O parecer do senador Demóstenes Torres (DEM-Goiás) transformou o projeto do Estatuto da Igualdade Racial, apresentado em 2003 pelo Senador Paulo Paim como o texto legal capaz de sintetizar as principais reivindicações da população negra brasileira, em um monstrengo irreconhecível, um "frankstein".
O que nasceu para ser uma segunda Lei da Abolição – destinado a dar o conteúdo que faltou à primeira – tornou-se um "frankstein": feio por fora e pior ainda por dentro, dadas as intenções e propósitos inconfessáveis dos que manobram nos bastidores pela sua aprovação.
A desconstrução do projeto começa no artigo 1º com a supressão do objetivo do Estatuto: “combater a discriminação racial e as desigualdades estruturais e de gênero que atingem os afro-brasileiros, incluindo a dimensão racial nas políticas públicas e outras ações desenvolvidas pelo Estado”.
Também de saída, já no artigo 1º, o senador goiano rejeita o termo “população negra” recusando a classificação do IBGE que define os brasileiros como pretos, pardos, amarelos, brancos e indígenas. Demóstenes invoca para si o direito de dizer quem é afro-brasileiro: “as pessoas que se classificam como tais ou como negros, pretos, pardos ou por definição análoga”.
O senador goiano, como é sabido, pertence ao Democratas - o Partido que representa os interesses dos grandes ruralistas e fazendeiros. Natural, portanto, que fuja como o diabo da cruz da questão quilombola – uma pedra no sapato dos herdeiros dos donos da Casa Grande.
A tesoura
A tesoura de Demóstenes risca do projeto de Estatuto o termo “terras de quilombos”. Mas não fica por aí. Coerente com o discurso feito na audiência pública promovida pelo Supremo Tribunal Federal, em março, que discutiu a questão das ações afirmativas e cotas, quando pretendeu fazer a revisão da história do Brasil para dizer que os casos de estupro durante o escravismo haviam sido consentidos pelas mulheres negras, o senador passa a tesoura em todo o dispositivo que garantia que as medidas de ação afirmativa deveriam se nortear “pelo respeito à proporcionalidade entre homens e mulheres afro-brasileiros, com vistas a garantir a plena participação da mulher afro-brasileira como beneficiária deste Estatuto”
Para alguém que se dá ao direito de classificar quem é negro e quem não é – na contramão do próprio IBGE que assegura aos cidadãos brasileiros o direito à auto-declaração - Demóstenes considera uma bobagem a necessidade da obrigatoriedade do quesito cor “em todos os documentos de uso do SUS, como cartões de identificação, prontuários médicos, fichas de notificação de doenças, formulários de resultados de exames laboratoriais, inquéritos epidemiológicos, estudos multicêntricos, pesquisas básicas, aplicadas e operacionais, qualquer outro instrumento que produza informação estatística”
E, claro, para provar que é radical na sua negativa dos efeitos dos 350 anos de escravidão, a tesoura de Demóstenes é célere na supressão de todos os artigos que tratam da saúde da população negra. O artigo 14 tinha a seguinte redação: “O poder Executivo incentivará a pesquisa sobre doenças prevalentes na população afro-brasileira, bem como desenvolverá programas de educação e de saúde e campanhas públicas de esclarecimento que promovam a sua prevenção e adequado tratamento”. Para que? Pergunta Demóstenes do alto da varanda da Casa Grande. Tesoura neles.
Retrocesso
Mais célere do que a dona Solange dos tempos da censura na ditadura, Demóstenes também considerou uma bobagem o artigo 15 que dizia: “Os estabelecimentos de saúde, públicos ou privados, que realizam partos, farão exames laboratoriais nos recém-nascidos para diagnóstico de hemoglobinopatias, em especial o traço falciforme e a anemia falciforme”.
A supressão desse artigo representa um retrocesso enorme porque o “teste do pezinho”, implantado de alguns para cá, ao invés de ser universalizado, passa a ser restringido.
Cotas? Nem pensar. O senador goiano, cá prá nós, considera essa história de cotas, conversa fiada de negro folgado querendo vaga sem esforço nas Universidades ou nas empresas.
Todo o artigo 70 do projeto aprovado pela Câmara dos Deputados foi simplesmente riscado, sem dó. “O Poder Público adotará, na forma de legislação específica e seus regulamentos, medidas destinadas à implementação de ações afirmativas, voltadas a assegurar o preenchimento por afro-brasileiros de cotas mínimas das vagas relativas (...) “aos cursos de graduação em todas as instituições públicas federais de educação superior do território nacional”.
Mestres de capoeira virando instrutores “reconhecidos pública e formalmente pelo seu trabalho”, religiões de matrizes-afrobrasileiras? O que é que é isso, minha gente? Pergunta Demóstenes, tesoura em punho. Tesoura em todos os dispositivos que tratavam do “reconhecimento da liberdade de consciência e de crença dos afro-brasileiros e da dignidade dos cultos e religiões de matrizes africanas praticados no Brasil deve orientar a ação do Estado em defesa da liberdade de escolha e de manifestação de filiação religiosa, individual e coletiva, em público ou em ambiente privado”.
Mais retrocesso
Nem pensar em reconhecer “aos praticantes das religiões de matrizes africanas e afro-indígenas" o direito de "ausentarem-se do trabalho para a realização de obrigações litúrgicas próprias de suas religiões, podendo tais ausências serem compensadas posteriormente”. Que heresia! Diria Demóstenes com seus botões, pernas esticadas na rede da varanda.
O capítulo que tratava do mercado de trabalho igualmente foi suprimido pelo zeloso senador, bem como igualmente o que tratava dos direitos da mulher. “O Poder Público garantirá a plena participação da mulher afro-brasileira como beneficiária deste Estatuto da Igualdade Racial e em particular lhe assegurará “a instituição de política de prevenção e combate ao tráfico de mulheres afro-brasileiras e aos crimes sexuais associados à atividade do turismo”.
Que tremenda, bobagem! Essas negrinhas que consentiram ser estupradas nos bons tempos, agora querem ter essas regalias, teria resmungado, a tesoura pronta a desfechar o golpe fatal.
Não teve menos sorte todo o capítulo que tratava da Comunicação: a tesoura goiana foi implacável. A possibilidade de filmes e programas veiculados pelas emissoras de televisão apresentarem imagens de pessoas afro-brasileiras em proporção não inferior a 20% (vinte por cento) do número total de atores e figurantes, foi considerado, particularmente, um abuso desses negros que insistem em não "saber" o seu lugar. Participação de afro-brasileiros na publicidade? Nem pensar. Tesoura neles.
No quesito acesso à Justiça, Demóstenes – que já foi promotor público -, sabia exatamente o que estava fazendo quando suprimiu sem dó nem piedade “a inclusão da temática da discriminação racial e desigualdades raciais no processo de formação profissional das carreiras policiais federais, civil e militar, jurídicas da Magistratura, do Ministério Público e da Defensoria Pública”.
Ópera bufa
Resumo dessa triste ópera: os senhores da Casa Grande – os mesmos que no Parlamento do Império impuseram as Leis do Ventre Livre, do Sexagenário, a Lei Áurea, apenas para dar alguma satisfação aos seus donos – (na época a poderosa Inglaterra, que pressionava pela Abolição, interessada em expandir o mercado assalariado, incompatível com o escravismo), continuam legislando para nós negros. E o que é pior: o fazem em nosso nome.
No processo de tramitação do Estatuto, os cortes já não foram poucos. Paim cedeu, compôs-se. O projeto foi sendo enxugado: primeiro retirou-se, por exigência da Fazenda, o Fundo de Promoção da Igualdade Racial, depois o seu caráter impositivo, tornaram-no autorizativo.
Na Câmara, depois da pressão que levou 100 mil assinaturas à Brasília, a partir de mobilização desencadeada em São Paulo, mais cortes; até o anúncio de um inusitado acordo com a bancada demo-tucana para aprová-lo.
O acordo foi descumprido pela bancada demo e agora eis que se anuncia o substitutivo fruto da tesoura de Demóstenes, e que ameaça ser aprovado – em tempo célere, rapidinho, como convém em acordos e negociações de bastidores, cujos propósitos não podem ser revelados à luz do dia.
Nos tais acordos e negociações, teriam se envolvido o ministro chefe da SEPPIR, Elói de Araújo, e o próprio senador Paim, a essa altura, provavelmente em crise existencial, em face do monstrengo, sem forma, nem conteúdo, que lhe é apresentado como o Estatuto que um dia pretendeu que fosse seu.
A pergunta que não quer calar é: a quem interessa que uma Lei que vem com 122 anos de atraso, seja transformada numa declaração vazia de conteúdo. Por que um Governo – como Governo Lula no alto dos seus quase 80% de popularidade, com maioria esmagadora no Senado e no Congresso, permite que os interesses de 50,3% de afro-brasileiros sejam repassados ao que há de pior na política brasileira – o DEM e os seus parceiros?
É preciso lembrar aos que estão tentados à comodidade do silêncio cúmplice: o que está sendo exibido ao distinto público não é o Estatuto da Igualdade; é um “frankstein” apenas para atender aos interesses de quem pretende transformá-lo em talismã eleitoral –, peça de marketing para satisfazer a tosquice dos ingênuos e o apetite dos espertos.
Com a palavra as entidades e lideranças do Movimento Negro Brasileiro – em especial os que fazem parte da base do Governo.
A desconstrução do projeto começa no artigo 1º com a supressão do objetivo do Estatuto: “combater a discriminação racial e as desigualdades estruturais e de gênero que atingem os afro-brasileiros, incluindo a dimensão racial nas políticas públicas e outras ações desenvolvidas pelo Estado”.
Também de saída, já no artigo 1º, o senador goiano rejeita o termo “população negra” recusando a classificação do IBGE que define os brasileiros como pretos, pardos, amarelos, brancos e indígenas. Demóstenes invoca para si o direito de dizer quem é afro-brasileiro: “as pessoas que se classificam como tais ou como negros, pretos, pardos ou por definição análoga”.
O senador goiano, como é sabido, pertence ao Democratas - o Partido que representa os interesses dos grandes ruralistas e fazendeiros. Natural, portanto, que fuja como o diabo da cruz da questão quilombola – uma pedra no sapato dos herdeiros dos donos da Casa Grande.
A tesoura
A tesoura de Demóstenes risca do projeto de Estatuto o termo “terras de quilombos”. Mas não fica por aí. Coerente com o discurso feito na audiência pública promovida pelo Supremo Tribunal Federal, em março, que discutiu a questão das ações afirmativas e cotas, quando pretendeu fazer a revisão da história do Brasil para dizer que os casos de estupro durante o escravismo haviam sido consentidos pelas mulheres negras, o senador passa a tesoura em todo o dispositivo que garantia que as medidas de ação afirmativa deveriam se nortear “pelo respeito à proporcionalidade entre homens e mulheres afro-brasileiros, com vistas a garantir a plena participação da mulher afro-brasileira como beneficiária deste Estatuto”
Para alguém que se dá ao direito de classificar quem é negro e quem não é – na contramão do próprio IBGE que assegura aos cidadãos brasileiros o direito à auto-declaração - Demóstenes considera uma bobagem a necessidade da obrigatoriedade do quesito cor “em todos os documentos de uso do SUS, como cartões de identificação, prontuários médicos, fichas de notificação de doenças, formulários de resultados de exames laboratoriais, inquéritos epidemiológicos, estudos multicêntricos, pesquisas básicas, aplicadas e operacionais, qualquer outro instrumento que produza informação estatística”
E, claro, para provar que é radical na sua negativa dos efeitos dos 350 anos de escravidão, a tesoura de Demóstenes é célere na supressão de todos os artigos que tratam da saúde da população negra. O artigo 14 tinha a seguinte redação: “O poder Executivo incentivará a pesquisa sobre doenças prevalentes na população afro-brasileira, bem como desenvolverá programas de educação e de saúde e campanhas públicas de esclarecimento que promovam a sua prevenção e adequado tratamento”. Para que? Pergunta Demóstenes do alto da varanda da Casa Grande. Tesoura neles.
Retrocesso
Mais célere do que a dona Solange dos tempos da censura na ditadura, Demóstenes também considerou uma bobagem o artigo 15 que dizia: “Os estabelecimentos de saúde, públicos ou privados, que realizam partos, farão exames laboratoriais nos recém-nascidos para diagnóstico de hemoglobinopatias, em especial o traço falciforme e a anemia falciforme”.
A supressão desse artigo representa um retrocesso enorme porque o “teste do pezinho”, implantado de alguns para cá, ao invés de ser universalizado, passa a ser restringido.
Cotas? Nem pensar. O senador goiano, cá prá nós, considera essa história de cotas, conversa fiada de negro folgado querendo vaga sem esforço nas Universidades ou nas empresas.
Todo o artigo 70 do projeto aprovado pela Câmara dos Deputados foi simplesmente riscado, sem dó. “O Poder Público adotará, na forma de legislação específica e seus regulamentos, medidas destinadas à implementação de ações afirmativas, voltadas a assegurar o preenchimento por afro-brasileiros de cotas mínimas das vagas relativas (...) “aos cursos de graduação em todas as instituições públicas federais de educação superior do território nacional”.
Mestres de capoeira virando instrutores “reconhecidos pública e formalmente pelo seu trabalho”, religiões de matrizes-afrobrasileiras? O que é que é isso, minha gente? Pergunta Demóstenes, tesoura em punho. Tesoura em todos os dispositivos que tratavam do “reconhecimento da liberdade de consciência e de crença dos afro-brasileiros e da dignidade dos cultos e religiões de matrizes africanas praticados no Brasil deve orientar a ação do Estado em defesa da liberdade de escolha e de manifestação de filiação religiosa, individual e coletiva, em público ou em ambiente privado”.
Mais retrocesso
Nem pensar em reconhecer “aos praticantes das religiões de matrizes africanas e afro-indígenas" o direito de "ausentarem-se do trabalho para a realização de obrigações litúrgicas próprias de suas religiões, podendo tais ausências serem compensadas posteriormente”. Que heresia! Diria Demóstenes com seus botões, pernas esticadas na rede da varanda.
O capítulo que tratava do mercado de trabalho igualmente foi suprimido pelo zeloso senador, bem como igualmente o que tratava dos direitos da mulher. “O Poder Público garantirá a plena participação da mulher afro-brasileira como beneficiária deste Estatuto da Igualdade Racial e em particular lhe assegurará “a instituição de política de prevenção e combate ao tráfico de mulheres afro-brasileiras e aos crimes sexuais associados à atividade do turismo”.
Que tremenda, bobagem! Essas negrinhas que consentiram ser estupradas nos bons tempos, agora querem ter essas regalias, teria resmungado, a tesoura pronta a desfechar o golpe fatal.
Não teve menos sorte todo o capítulo que tratava da Comunicação: a tesoura goiana foi implacável. A possibilidade de filmes e programas veiculados pelas emissoras de televisão apresentarem imagens de pessoas afro-brasileiras em proporção não inferior a 20% (vinte por cento) do número total de atores e figurantes, foi considerado, particularmente, um abuso desses negros que insistem em não "saber" o seu lugar. Participação de afro-brasileiros na publicidade? Nem pensar. Tesoura neles.
No quesito acesso à Justiça, Demóstenes – que já foi promotor público -, sabia exatamente o que estava fazendo quando suprimiu sem dó nem piedade “a inclusão da temática da discriminação racial e desigualdades raciais no processo de formação profissional das carreiras policiais federais, civil e militar, jurídicas da Magistratura, do Ministério Público e da Defensoria Pública”.
Ópera bufa
Resumo dessa triste ópera: os senhores da Casa Grande – os mesmos que no Parlamento do Império impuseram as Leis do Ventre Livre, do Sexagenário, a Lei Áurea, apenas para dar alguma satisfação aos seus donos – (na época a poderosa Inglaterra, que pressionava pela Abolição, interessada em expandir o mercado assalariado, incompatível com o escravismo), continuam legislando para nós negros. E o que é pior: o fazem em nosso nome.
No processo de tramitação do Estatuto, os cortes já não foram poucos. Paim cedeu, compôs-se. O projeto foi sendo enxugado: primeiro retirou-se, por exigência da Fazenda, o Fundo de Promoção da Igualdade Racial, depois o seu caráter impositivo, tornaram-no autorizativo.
Na Câmara, depois da pressão que levou 100 mil assinaturas à Brasília, a partir de mobilização desencadeada em São Paulo, mais cortes; até o anúncio de um inusitado acordo com a bancada demo-tucana para aprová-lo.
O acordo foi descumprido pela bancada demo e agora eis que se anuncia o substitutivo fruto da tesoura de Demóstenes, e que ameaça ser aprovado – em tempo célere, rapidinho, como convém em acordos e negociações de bastidores, cujos propósitos não podem ser revelados à luz do dia.
Nos tais acordos e negociações, teriam se envolvido o ministro chefe da SEPPIR, Elói de Araújo, e o próprio senador Paim, a essa altura, provavelmente em crise existencial, em face do monstrengo, sem forma, nem conteúdo, que lhe é apresentado como o Estatuto que um dia pretendeu que fosse seu.
A pergunta que não quer calar é: a quem interessa que uma Lei que vem com 122 anos de atraso, seja transformada numa declaração vazia de conteúdo. Por que um Governo – como Governo Lula no alto dos seus quase 80% de popularidade, com maioria esmagadora no Senado e no Congresso, permite que os interesses de 50,3% de afro-brasileiros sejam repassados ao que há de pior na política brasileira – o DEM e os seus parceiros?
É preciso lembrar aos que estão tentados à comodidade do silêncio cúmplice: o que está sendo exibido ao distinto público não é o Estatuto da Igualdade; é um “frankstein” apenas para atender aos interesses de quem pretende transformá-lo em talismã eleitoral –, peça de marketing para satisfazer a tosquice dos ingênuos e o apetite dos espertos.
Com a palavra as entidades e lideranças do Movimento Negro Brasileiro – em especial os que fazem parte da base do Governo.
São Paulo, 12/6/2010
Dojival Vieira
Jornalista Responsável
Registro MtB: 12.884 - Proc. DRT 37.685/81
Email: dojivalvieira@hotmail.com; abcsemracismo@hotmail.com
Equipe de Redação:
Dojival Vieira, Dolores Medeiros, Julia Medeiros e Gabriel Silveira
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