Nós, aproximadamente 600 profissionais da educação do Estado do Paraná, reunidas/os no VII Encontro de Educadoras/es Negras/os do Paraná, no Centro de Capacitação de Faxinal do Céu, município de Pinhão, entre os dias 22 a 27/11/2010, elaboramos este manifesto que deverá ser entregue e/ou veiculado a todas e todos comprometidas/os com uma educação antirracista, justa e equânime para que se apropriem de seu conteúdo e referende-o:
Casa Civil da Presidência da República, Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (SEPPIR), Ministério Público Federal e Estadual, Ministério da Educação (MEC), Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade (SECAD), Conselho Nacional de Educação (CNE), Entidades dos Movimentos Sociais, Conselho Estadual de Educação do Paraná (CEE-PR), Secretaria de Estado da Educação do Paraná (SEED), Governo do Estado do Paraná, União Nacional dos Dirigentes Municipais de Educação (UNDIME), universidades públicas e privadas, em âmbito estadual e federal, União Nacional do Estudantes (UNE), Associação dos pesquisadores e pesquisadoras negros e negras (ABPN), bem como todas as outras instituições relacionadas à educação e todos os veículos de comunicação.
Esse evento que reuniu grande contingente de profissionais da educação para avaliar políticas públicas educacionais do Estado do Paraná, propor ações e formas mais efetivas de combate ao racismo, teve como tema “A Revolta da Chibata: resistências históricas e cotidianas da população negra”. Tal tema alude aos 100 anos da revolta da chibata, movimento liderado pelo “Almirante Negro”, João Cândido, um herói nacional que marcou a história por não se subjugar aos interesses racistas da elite brasileira. Um homem negro que reverteu um quadro de opressão e violência do qual marinheiros brasileiros eram submetidos. Nesse sentido, esse encontro rememora a resistência de João Cândido e seus companheiros e instiga-nos a também resistirmos frente a outra “chibata” que está sendo imposta por muitos veículos de comunicação e por uma intelectualidade “autorizada” historicamente a falar sobre o que a sociedade deve compreender (ou não) de racismo, do qual a população negra é submetida diariamente.
Trata-se da polêmica em torno do Parecer nº 15/2010, emitido pelo Conselho Nacional de Educação/Câmara de Educação Básica (CNE/CEB), diante de uma denúncia quanto à publicação de uma obra de Monteiro Lobato, intitulada Caçadas de Pedrinho, identificada pelo CNE, SECAD e pesquisadoras e pesquisadores1 como um livro que reproduz estereótipos e discriminações especificamente direcionadas à população negra (no caso, à personagem Tia Nastácia). Considerando que esse livro, para além da denúncia feita ao CNE sobre a sua veiculação em escolas privadas do Distrito Federal, trata-se de uma obra que também compõe o acervo de todas as bibliotecas de escolas públicas da educação básica brasileira (PNBE/1998 e 2003)2.
Como já bastante difundido pela mídia brasileira, o referido livro apresenta marcas racistas, principalmente ao relacionar características físicas da personagem Tia Nastácia a animais como urubu e macaco. O fato de tal obra estar acessível em todas as escolas da educação básica preocupou-nos ao discutirmos nesse evento os efeitos de produções artísticas (como livros, por exemplo) que servem para atualizar em crianças e adolescentes um imaginário coletivo de estereótipos construídos em torno do corpo negro. Discutimos também sobre a importância desse autor específico, Monteiro Lobato, para a literatura nacional. Não podemos negar ou omitir, de modo algum, que seu legado literário alterou o modelo da literatura infanto-juvenil brasileira ao propor uma estrutura familiar diferenciada e personagens de crianças autônomas e críticas. Contudo, o espaço reservado ao segmento negro (por meio de Tia Nastácia, Tio Barnabé e Saci) reproduz, reifica e atualiza o racismo.
Assim, causa-nos (ou nem tanto) surpresa em verificar a manobra ideológica da mídia brasileira em apresentar argumentos falaciosos, imparciais e amparados apenas em intelectuais que estão historicamente “autorizadas/os” em pensar e escrever “sobre e pelo o negro”, desconsiderando e desqualificando qualquer argumento ou perspectiva que tenha origem entre intelectuais comprometidas/os, muitas vezes oriundas/os dos Movimentos Sociais Negros, apontando-as/os como criadoras/es de um racismo às avessas, ou de proponentes de uma “literatura autoritariamente auto-amordaçada” (Marisa Lajolo)3.
Discordamos totalmente de propostas reacionárias que promovam o cerceamento do direito pleno de leitoras e leitores em acessar a literatura brasileira (o que, inclusive, em nenhum momento foi proposto pelo Parecer nº 15 do CNE). No entanto, não podemos concordar que projetos oriundos do dinheiro público sejam responsáveis por adquirir para as escolas públicas livros ou qualquer material didático que desvalorizem ou atinjam diretamente de forma negativa a identidade de um segmento social e que representa aproximadamente 50% da população brasileira.
Assim, nesse manifesto:
1. Apoiamos total e irrestritamente o Parecer nº 15/2010 – CNE/CEB e sua relatora, profa. Dra. Nilma Lino Gomes – mulher negra que compõe a atual gestão do CNE.
2. Exigimos, por parte da mídia nacional, uma cobertura real diante do conteúdo do Parecer, que é um direito da população brasileira, para tenha ciência dos verdadeiros objetivos desse documento.
3. Repudiamos as entidades e órgãos que se posicionaram de modo racista diante do Parecer e não promoveram um debate coerente com estudos atuais sobre relações raciais no Brasil4.
4. Exigimos do Estado Brasileiro como forma de reparação dos danos morais acometidos a todas as crianças negras e não-negras que tiveram acesso a livros racistas, EM CARÁTER EMERGENCIAL (na atual conjuntura) e de modo contínuo (posteriormente), a ampla aquisição de obras que elevem a autoestima e colaborem no processo de formação da identidade da população brasileira, sobretudo negra, para que tenhamos orgulho das origens africanas que constituem, ao lado de outras, o povo brasileiro.
Entendemos que mais do que fomentar a publicação de obras consideradas “clássicas”, devemos promover a difusão de obras que não submetam crianças, jovens e pessoas adultas a situações vexatórias, a constrangimentos, a humilhações e que, sobretudo, não sirvam para desumanizar grupos humanos. Queremos sim, um modelo de educação e sociedade condizente com a diversidade humana que compõe o país, assim como preconiza as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana:
Pedagogias de combate ao racismo e a discriminações elaboradas com o objetivo de educação das relações étnico/raciais positivas têm como objetivo fortalecer entre os negros e despertar entre os brancos a consciência negra. Entre os negros, poderão oferecer conhecimentos e segurança para orgulharem-se da sua origem africana; para os brancos, poderão permitir que identifiquem as influências, a contribuição, a participação e a importância da história e da cultura dos negros no seu jeito de ser, viver, de se relacionar com as outras pessoas, notadamente as negras. Também farão parte de um processo de reconhecimento, por parte do Estado, da sociedade e da escola, da dívida social que têm em relação ao segmento negro da população, possibilitando uma tomada de posição explícita contra o racismo e a discriminação racial e a construção de ações afirmativas nos diferentes níveis de ensino da educação brasileira5.
Esse documento é assinado por profissionais da educação que estão engajadas/os na proposição de mais uma revolta da chibata, desta vez contra uma chibata revestida de requintes de sutileza e de um respaldo “intelectual” e que, simbolicamente, evidencia o racismo brasileiro.
Faxinal do Céu – PR, 26 de novembro de 2010.
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