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CALENDÁRIO NEGRO – DEZEMBRO

1 – O flautista Patápio Silva é contemplado com a medalha de ouro do Instituto Nacional de Música, prêmio até então nunca conferido a um negro (1901)
1 – Nasce no Rio de Janeiro (RJ) Otto Henrique Trepte, o compositor Casquinha, integrante da Velha Guarda da Portela, parceiro de Candeia, autor de vários sambas de sucesso como: "Recado", "Sinal Aberto", "Preta Aloirada" (1922)
1 – O líder da Revolta da Chibata João Cândido após julgamento é absolvido (1912)
1 – Todas as unidades do Exército dos Estados Unidos (inclusive a Força Aérea, nesta época, uma parte do exército) passaram a admitir homens negros (1941)
1 – Rosa Parks recusa-se a ceder o seu lugar num ônibus de Montgomery (EUA) desafiando a lei local de segregação nos transportes públicos. Este fato deu início ao "milagre de Montgomery” (1955)
2 – Dia Nacional do Samba
2 – Nasce em Magé (RJ) Francisco de Paula Brito. Compôs as primeiras notícias deste que é hoje o mais antigo jornal do Brasil, o Jornal do Comércio (1809)
2 – Nasce em Salvador (BA) Deoscóredes Maximiliano dos Santos, o sumo sacerdote do Axé Opô Afonjá, escritor e artista plástico, Mestre Didi (1917)
2 – Inicia-se na cidade de Santos (SP), o I Simpósio do Samba (1966)
2 – Fundação na cidade de Salvador (BA), do Ilê Asipa, terreiro do culto aos egugun, chefiado pelo sumo sacerdote do culto Alapini Ipekunoye Descoredes Maximiliano dos Santos, o Mestre Didi (1980)
2 – Começa em Valença (RJ), o 1º Encontro Nacional de Mulheres Negras (1988)
3 – Frederick Douglas, escritor, eloquente orador em favor da causa abolicionista, e Martin R. Delaney fundam nos Estados Unidos o North Star, jornal antiescravagista (1847)
3 – Nasce em Valença(BA), Maria Balbina dos Santos, a líder religiosa da Comunidade Terreiro Caxuté, de matriz Banto-indígena, localizada no território do Baixo Sul da Bahia, Mãe Bárbara ou Mam’eto kwa Nkisi Kafurengá (1973)
3 – Numa tarde de chuva, em um bairro do subúrbio do Rio de Janeiro, é fundado o Coletivo de Escritores Negros do Rio de Janeiro (1988)
4 – Dia consagrado ao Orixá Oyá (Iansã)
4 – 22 marinheiros, revoltosos contra a chibata, castigo físico dado aos marinheiros, são presos pelo Governo brasileiro, acusados de conspiração (1910)
4 – Realizado em Valença (RJ), o I Encontro Nacional de Mulheres Negras, que serviu como um espaço de articulação política para as mais de 400(quatrocentas) mulheres negras eleitas como delegadas nos dezoito Estados brasileiros (1988)
5 – Depois de resistir de 1630 até 1695, é completamente destruído o Quilombo dos Palmares (1697)
5 – Nasce em Pinhal (SP) Otávio Henrique de Oliveira, o cantor Blecaute (1919)
5 – Nasce no Rio de Janeiro (RJ) o compositor Rubem dos Santos, o radialista Rubem Confete (1937)
5 – O cantor jamaicano Bob Marley participa do show "Smile Jamaica Concert", no National Hero's Park, dois dias depois de sofrer um atentado provavelmente de origem política (1976)
6 – Edital proibia o porte de arma aos negros, escravos ou não e impunha-se a pena de 300 açoites aos cativos que infringissem a lei. (1816)
6 – Nasce no Rio de Janeiro (RJ) Jorge de Oliveira Veiga, o cantor Jorge Veiga (1910)
6 – Nasce no Rio de Janeiro (RJ) Emílio Vitalino Santiago, o cantor Emílio Santiago (1946)
6 – Realização em Goiás (GO) do Encontro Nacional de Mulheres Negras, com o tema “30 Anos contra o Racismo e a Violência e pelo Bem Viver – Mulheres Negras Movem o Brasil” (2018)
7 – Nasce Sir Milton Margai, Primeiro Ministro de Serra Leoa (1895)
7 – Nasce no Rio de Janeiro (RJ) Luís Carlos Amaral Gomes, o poeta Éle Semog (1952)
7 – Clementina de Jesus, a "Mãe Quelé", aos 63 anos pisa o palco pela primeira vez como cantora profissional, no Teatro Jovem, primeiro show da série de espetáculos "Menestrel" sob a direção de Hermínio Bello de Carvalho (1964)
8 – Nasce em Salvador(BA) o poeta e ativista do Movimento Negro Jônatas Conceição (1952)
8 – Fundação na Província do Ceará, da Sociedade Cearense Libertadora (1880)
8 – Nasce no Harlem, Nova Iorque (EUA), Sammy Davis Jr., um dos artistas mais versáteis de toda a história da música e do "show business" americano (1925)
8 – Nasce no Rio de Janeiro (RJ) Alaíde Costa Silveira, a cantora Alaíde Costa (1933)
8 – Dia consagrado ao Orixá Oxum
9 – Nasce em São Paulo (SP) Erlon Vieira Chaves, o compositor e arranjador Erlon Chaves (1933)
9 – Nasce em Monte Santo, Minas Gerais, o ator e diretor Milton Gonçalves (1933)
9 – Nasce em Salvador/BA, a atriz Zeni Pereira, famosa por interpretar a cozinheira Januária na novela Escrava Isaura (1924)
10 – O líder sul-africano Nelson Mandela recebe em Oslo, Noruega o Prêmio Nobel da Paz (1993)
10 – O Presidente da África do Sul, Nelson Mandela, assina a nova Constituição do país, instituindo legalmente a igualdade racial (1996)
10 – Dia Internacional dos Direitos Humanos, instituído pela ONU em 1948
10 – Fundação em Angola, do Movimento Popular de Libertação de Angola - MPLA (1975)
10 – Criação do Programa SOS Racismo, do IPCN (RJ), Direitos Humanos e Civis (1987)
11 – Nasce em Gary, condado de Lake, Indiana (EUA), Jermaine LaJaune Jackson, o cantor, baixista, compositor, dançarino e produtor musical Jermaine Jackson (1954)
11 – Festa Nacional de Alto Volta (1958)
11 – Surge no Rio de Janeiro, o Jornal Redenção (1950)
12 – O Presidente Geral do CNA, Cheif Albert Luthuli, recebe o Prêmio Nobel da Paz, o primeiro a ser concedido a um líder africano (1960)
12 – Nasce em Leopoldina (MG) Osvaldo Alves Pereira, o cantor e compositor Noca da Portela, autor de inúmeros sucessos como: "Portela na Avenida", "é preciso muito amor", "Vendaval da vida", "Virada", "Mil Réis" (1932)
12 – Nasce no Rio de Janeiro (RJ) Wilson Moreira Serra, o compositor Wilson Moreira, autor de sucessos como "Gostoso Veneno", "Okolofé", "Candongueiro", "Coisa da Antiga" (1936)
12 – Independência do Quênia (1963)
13 – Dia consagrado a Oxum Apará ou Opará, a mais jovem entre todas as Oxuns, de gênio guerreiro
13 – Nasce em Exu (PE) Luiz Gonzaga do Nascimento, o cantor, compositor e acordeonista Luiz Gonzaga (1912)
14 – Rui Barbosa assina despacho ordenando a queima de registros do tráfico e da escravidão no Brasil (1890)
15 – Machado de Assis é proclamado o primeiro presidente da Academia Brasileira de Letras (1896)
16 – Nasce na cidade do Rio Grande (RS) o político Elbert Madruga (1921)
16 – O Congresso Nacional Africano (CNA), já na clandestinidade, cria o seu braço armado (1961)
17 – Nasce no Rio de Janeiro (RJ) Augusto Temístocles da Silva Costa, o humorista Tião Macalé (1926)
18 – Nasce em King William's Town, próximo a Cidade do Cabo, África do Sul, o líder africano Steve Biko (1946)
18 – A aviação sul-africana bombardeia uma aldeia angolana causando a morte dezenas de habitantes (1983)
19 – Nasce nos Estados Unidos, Carter G. Woodson, considerado o "Pai da História Negra" americana (1875)
19 – Nasce no bairro de São Cristóvão (RJ) Manuel da Conceição Chantre, o compositor e violonista Mão de Vaca (1930)
20 – Abolição da escravatura na Ilha Reunião (1848)
20 – Nasce em Salvador (BA) Carlos Alberto de Oliveira, advogado, jornalista, político e ativista do Movimento Negro, autor da Lei 7.716/1989 ou Lei Caó, que define os crimes em razão de preconceito e discriminação de raça ou cor (1941)
21 – Nasce em Los Angeles (EUA) Delorez Florence Griffith, a atleta Florence Griffith Joyner - Flo-Jo, recordista mundial dos 100m (1959)
22 – Criado o Museu da Abolição, através da Lei Federal nº 3.357, com sede na cidade do Recife, em homenagem a João Alfredo e Joaquim Nabuco (1957)
23 – Nasce em Louisiana (EUA) Sarah Breedlove, a empresária de cosméticos, filantropa, política e ativista social Madam C. J. Walker, primeira mulher a construir sua própria fortuna nos Estados Unidos ao criar e vender produtos de beleza para mulheres negras. Com sua Madam C.J. Walker Manufacturing Company, ela fez doações em dinheiro a várias organizações e projetos voltados à comunidade negra (1867)
23 – Criação no Rio de Janeiro, do Grupo Vissungo (1974)
23 - O senador americano Jesse Jackson recebe o título de Cidadão do Estado do Rio de Janeiro e o diploma de Cidadão Benemérito do Rio de Janeiro durante visita ao Brasil, por meio do Projeto de Resolução nº 554 de 1996, de autoria do Deputado Graça e Paz (1996)
24 – João Cândido, líder da Revolta da Chibata e mais 17 revoltosos são colocados na "solitária" do quartel-general da Marinha (1910)
25 – Parte do Rio de Janeiro, o navio Satélite, levando 105 ex-marinheiros participantes da Revolta da Chibata, 44 mulheres, 298 marginais e 50 praças do Exército, enviados sem julgamento para trabalhos forçados no Amazonas. 9 marujos foram fuzilados em alto-mar e os restantes deixados nas margens do Rio Amazonas (1910)
25 – Nasce no Município de Duque de Caxias, (RJ) Jair Ventura Filho, o jogador de futebol Jairzinho, "O Furacão da Copa de 1970" (1944)
26 – Primeiro dia do Kwanza, período religioso afro-americano
27 – Nasce em Natal (RN), o jogador Richarlyson (1982)
28 – O estado de São Paulo institui o Dia da Mãe Preta (1968)
28 – Nasce na Pensilvânia (EUA), Earl Kenneth Hines, o pianista Earl “Fatha” Hines, um dos maiores pianistas da história do jazz (1903)
29 – Nasce no Rio de Janeiro (RJ) Édio Laurindo da Silva, o sambista Delegado, famoso mestre-sala da Estação Primeira de Mangueira (1922)
29 – Nasce em Diourbel, Senegal, Cheikh Anta Diop, historiador, antropólogo, físico e político (1923)
30 – Nasce no Rio de Janeiro (RJ) Maria de Lourdes Mendes, a jongueira Tia Maria da Grota (1920)
30 – Nasce em Cypress, Califórnia (EUA), Eldrick Tont Woods, o jogador de golfe Tiger Woods, considerado um dos maiores golfistas de todos os tempos (1975)
31 – Nasce no Morro da Serrinha, Madureira (RJ), Darcy Monteiro, músico profissional, compositor, percussionista, ritmista, jongueiro, criador do Grupo Bassam, nome artístico do Jongo da Serrinha (1932)
31 – Nasce na Virgínia (EUA), Gabrielle Christina Victoria Douglas, ou Gabby Douglas, a primeira pessoa afro-americana e a primeira de ascendência africana de qualquer nacionalidade na história olímpica a se tornar campeã individual e a primeira ginasta americana a ganhar medalha de ouro, tanto individualmente como em equipe, numa mesma Olimpíada, em 2012 (1995)
31 – Fundada pelo liberto Polydorio Antonio de Oliveira, na Rua General Lima e Silva nº 316, na cidade de Porto Alegre, a Sociedade Beneficente Floresta Aurora (1872)
31 – Dia dos Umbandistas



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quarta-feira, 28 de setembro de 2011

As duas mortes do Toni

Por João Negrão, especial para o Maria Frô
26/09/2011

Quarta-feira, 21 de setembro de 2011, 19 horas, em Jackson, capital do estado da Geórgia, Estados Unidos, Troy Davis, um negro de 42 anos, recebeu a dose letal que o levaria à morte. Condenado por assassinato, Troy Davis deitou-se na maca para receber as injeções repetindo a mesma frase de 22 anos antes, quando foi preso e condenado: “Sou inocente”.
Quinta-feira, 22 de setembro de 2011, por volta das 23 horas, em Cuiabá, capital do estado de Mato Grosso, Brasil, Tony Bernardo da Silva, um negro de 27 anos, africano de Guiné-Bissau, estudante de Economia da Universidade Federal, recebeu um pontapé na traquéia e morreu. O golpe culmina uma sessão de socos e pontapés desferidos por dois policiais e um empresário que duraria em torno de 15 minutos.
Impossível não traçar um paralelo entre as duas mortes.
A primeira foi uma condenação legal, nos moldes da justiça norte-americana, que todos conhecemos, empenhada a condenar negros, ainda que, como é o caso de Troy, haja evidências de inocência. Inclusive depoimento de outro preso assumindo a autoria do crime atribuído a ele. Em vão: Troy não recebeu perdão, não teve a clemência do governador da Geórgia e muito menos direito a recurso na Suprema Corte, dado às evidências de sua inocência.
Difícil não imaginar que se trata de mais um caso de racismo como os que pontuam a crueldade do sistema jurídico e a sociedade racista dos Estados Unidos, especialmente nos estados sulistas como a Geórgia.
Como é difícil não suspeitar que o caso do Toni foi uma expressão pura e cabal de racismo.
Uma condenação prévia: um negro que adentra a uma pizzaria freqüentada por rapagões e moçoilas de classe média alta de Cuiabá, num bairro idem, embora predominantemente de repúblicas estudantis (o Boa Esperança fica ao lado do campus da UFMT) é um bandido. E ainda mais se este negro acidentalmente esbarra na namorada de um desses fregueses.
Afinal, aquele não é um lugar para negros. Pior ainda. Que atrevimento! Um negro que deveria estar na senzala não pode adentrar a uma casa grande dos pequenos burgueses e tocar a mulher branca do sinhozinho.
Então, eis seu crime. E está decretada a pena de morte. Não se sabe se os policiais e o empresário (sinhozinho) estavam armados. Se estivessem teriam desferido vários tiros?  Tenho dúvida. Não sei se não preferiram mesmo usar como instrumentos de execução os socos e pontapés. Afinal, esta na moda uma das marcas da intolerância: matar a porradas negros, homossexuais e todos que esses “bad boys” não toleram por serem diferentes deles, supostamente bem nascidos, bem nutridos e crentes da impunidade. E com um ingrediente macabro: eles se divertem.  E não raras vezes filmam e jogam em suas redes sociais.
Seguindo o mesmo “modelito” que a imprensa em geral aplica a esses casos, todos ciosos a dar voz e vez aos assassinos da elite, tentam desqualificar o morto. Versões diversas surgem por todos lados dando conta que ele tinha passagens pela polícia, era drogado, perdeu a vaga no convênio da UFMT e outras informações nefastas. Como sempre trabalham com meias-verdades, com deturpações dos fatos e a omissão de outros.
Essas versões são disseminadas por advogados e familiares dos assassinos, que encontram voz em veículos de comunicação que, deliberadamente ou não, as propagam sem questionar o contexto da vida do Toni e os depoimentos de amigos, colegas e ex-namorada, todos, unanimemente, testemunhando sua conduta passível e respeitadora.
É compreensível que os advogados e familiares tomem tal atitude. Mas não justifica a postura dos representantes da Universidade Federal de Mato Grosso, que qualificaram o Toni como um indivíduo de má conduta.
O setor da UFMT responsável pelo convênio entre o governo brasileiro e os governos dos países africanos de língua portuguesa, que permitem jovens daqueles países estudarem no Brasil, sempre foi omisso e racista com esses estudantes. Poderia desfilar aqui uma série de descasos, dificuldades criadas e declarações preconceituosas. Não é o caso agora.
Por enquanto fica o registro de que o Toni sempre buscou desesperadamente lutar contra o vício do crack e encontrou pouco apoio na UFMT. Seus amigos se mobilizaram, igualmente seus colegas e professores. Mas a instituição se agarrou na burocracia. Por ele não conseguir mais freqüentar as aulas, o desligaram do convênio, pura e simplesmente. E ficou por isso. Contudo não pouparam declarações cruéis, insensíveis e até irresponsáveis na imprensa.
Esta é a mesma instituição que ignora que drogas como o crack estão se proliferando dentro e na periferia do campus da UFMT do Boa Esperança. Foi ali mesmo que o Toni se viciou. Nas imediações da república em que ele morava, assim como nos corredores da UFMT, a droga e traficantes transitam livremente. Que providência a instituição tem tomado acerca disso? Prefere tapar os olhos e ajudar a condenar seus jovens alunos.
Foi-se o tempo em que o romantismo e a rebeldia de fumar um baseado faziam parte do cotidiano universitário. Agora o ambiente universitário é um dos mercados de drogas pesadas, assim como seu entorno. E a tragédia do crack, a pior delas, bate à porta de todos nós. Meus amigos e colegas, muitos deles vivendo esse drama familiar, sabem do que estou dizendo. Acompanhei esses dramas quando morava ainda em Cuiabá.
Eu mesmo o vivo bem de perto. Tenho um irmão que vive a perambular pelas ruas de Goiânia se consumindo pelo crack. Gilmar, um dos sete filhos adotivos de minha mãe, era um rapaz trabalhador desde criança. Estudou, casou, formou família. Suas três filhas e esposa não agüentaram viver aquela tragédia e o abandonaram. Desde então passou a viver nas cracolândias do bairro Vila Nova, na capital de Goiás.
Minha mãe, já com seus 74 anos e morando agora em Goiânia, acompanha seu infortúnio e, dentro de suas limitações, nos mobiliza a todos para tentar salvá-lo.
O Toni tentou sobreviver. Poucos meses antes de voltar para Brasília, o recebi na minha casa, a qual ele freqüentava com os demais estudantes guineenses. Minha mulher era amiga dele, chegaram de Guiné-Bissau juntos. Ele para curso Economia e ela, Publicidade. Éramos capazes de deixar nossa casa aberta para ele, junto com meus filhos. O Toni não era um bandido. Repito: era uma pessoa amável e respeitadora.
Naquela tarde fria de julho e Cuiabá melancólica devido à carência de seu sol escaldante, o Toni chegou desesperado. Primeiro pediu dinheiro emprestado. Depois, muito envergonhado, chorou no nosso colo. Pediu ajuda, implorou para que afastássemos aquela sua vontade incontrolável de querer consumir a droga. Então começamos a mobilizar os amigos, colegas e seus professores. Ele necessitava de tratamento para poder concluir os estudos e voltar para o seu país.
Dois meses depois voltei para Brasília. Mas acompanhamos daqui a vida do Toni. Ficamos sabendo que ele havia ido para o tratamento. Depois fomos informados que havia vendido tudo que tinha e foi obrigado a entregar toda a sua bolsa de estudos para os traficantes. Quando perdeu a bolsa, foi para a rua mendigar. Foi num desses momentos que entrou na pizzaria naquela noite do dia 22 de setembro.
O Toni é filho de uma família de classe média alta em Guiné-Bissau. Seu pai é agrônomo e possui uma pequena fazenda. Idealista, sempre quis que os filhos tivessem boa formação para ajudarem no desenvolvimento do país. Tem irmãos que estudam ou estudaram na França, Inglaterra e Portugal. Parte da família fez carreira nas forças armadas, onde um tio seu é um dos comandantes.
Certa vez o Toni foi flagrado pela polícia em Cuiabá carregando um botijão de gás que ganhou de um dos colegas, pois o seu ele havia vendido para comprar crack. A polícia o abordou, o levou preso, apesar de afirmar que o objeto era dele. Passou o dia inteiro na delegacia, jogado numa sala e só saiu de lá depois que acionou a Polícia Federal, jurisdição da qual estão os estudantes africanos.
Aqui abro um parêntese. Não foram poucas as vezes que a UFMT acionou a Polícia Federal para perseguir os estudantes africanos que, por um motivo ou outro, não estavam freqüentando aulas ou haviam formado e ainda estavam no Brasil tentando pós-graduações ou empregos.
Setores da imprensa de Cuiabá, motivados por advogados e familiares dos assassinos, utilizam este caso do botijão, entre outros sem gravidade, para propagar que o Toni tinha passagens pela polícia. Como se a tal “passagem” fosse uma sentença de morte.
Antes de continuar, peço licença para contar duas histórias:
Em 1980, um rapaz que faria 20 anos dali a poucas semanas, cursava Agrimensura na antiga Escola Técnica Federal de Goiás e fazia estágio numa cidade a 20 quilômetros de Goiânia. Numa tarde, como fazia todos os dias, entrou às 17 horas no ônibus que o levaria de volta para casa, quando dois policiais o abordaram, algemaram, jogaram no camburão e levaram para a delegacia. Lavraram um boletim e mal ouviram a versão do rapaz. Em seguida, para fazê-lo confessar que havia feito um assalto, os policiais deram-lhe tapas nos ouvidos, murros, beliscões no nariz, nas orelhas, cascudos e ameaçaram quebrar seus dedos com um alicate e queimá-lo com cigarros.
As sevícias duram até que um dos policiais sugeriu ao delegado que o rapaz fosse levado para que a vítima identificasse o assaltante. Àquela altura a cidade inteira já sabia da prisão. Ao chegar à casa da senhora assaltada, de onde foram levados um televisor, aparelho de som e uma bicicleta do filho, o carro da polícia encontrou uma multidão que queria linchar o “bandido”. Os policiais com dificuldade abriram um corredor para a mulher chegar até o carro. Quando ela olhou pelo pára-brisa foi logo dizendo: “Não, não é este. O ladrão é branco!”.
Em 2004, um homem de 44 anos foi abordado pela polícia próximo à sua casa. Estranhou o fato de os policiais o obrigarem a ficar ao lado da viatura, longe do seu carro. Então um dos policiais faz uma rápida revista e aparece com um revolver e um pacote do que seriam drogas. Imediatamente o homem protesta, denuncia a “plantação” e só não vai preso porque estava com a identificação de secretário-adjunto de Comunicação Social do governo de Mato Grosso e ameaçou denunciar os policiais, que imediatamente fugiram do local.
O homem e o rapaz de 24 anos antes é a mesma pessoa: eu. Poderia aqui contar outras várias histórias de arbitrariedades e prisões às quais fui submetido.  Por ser negro, tido como ladrão, drogado e traficante, tive passagens pela polícia. Infelizmente aquela piadinha infame que de vez em quando ouvimos por aí  é de fato uma máxima entre policiais: “Preto parado é suspeito, correndo é ladrão”.
Quantas passagens pela polícia justificam uma morte?
Mereceria eu morrer por ter cometido o crime de ter nascido negro?
Mereceria eu morrer pelo crime de provocar aos policiais a sanha assassina de quem ainda nos vê como escravos, como sub-raça, como seres desprezíveis?
Mereceria eu morrer porque há cinco séculos retiraram meus antepassados da África, jogaram num navio negreiro, atravessaram o Atlântico, os leiloaram, os submeteram a ferro e fogo, os jogaram nos canaviais, minas e fazendas, os subjugaram nas senzalas, colocaram no pelourinho, humilharam, sugaram seus sangues e suores, para depois, com a abolição, os jogarem as ruas como se fossem animais, sem direito a dignidade?
Deveria eu morrer por ser filho de Clarice Laura e José Orozimbo, neto de José e Regina e de Josefa e Pedro Alves, por sua vez netos e filhos de escravos?
Este é meu crime?
Por favor, se é este o meu crime, então que me matem! Mas me matem apenas uma vez. Não façam como estão fazendo com o Toni.
Depois de ser trucidado pelos “bad boys da intolerância”,  Toni corre o risco de ser massacrado, pisoteado, sangrando até a última gota da sua dignidade.
PS: O corpo do Toni ainda está no IML de Cuiabá aguardando resultados de exames pedidos pelo delegado que acompanha o caso e a chegada da família para liberá-lo.

Dona Cecília, mãe dele, me informou que um de suas irmãs, que é arquiteta na França, deve vir ao Brasil.

A Embaixada de Guiné-Bissau em Brasília também está acompanhando o caso e prestando apoio à família.

O governo brasileiro, por meio do Itamaraty, já se manifestou, repudiando o crime e pedindo desculpas à família e aos guineenses.

Amigos e compatriotas do Toni estão se mobilizando em Cuiabá e aqui em Brasília, denunciando o assassinato e pedido para que seja tipificado como motivado por racismo.

Se desejarem ir ao link onde o texto foi originalmente publicado, acessem: http://mariafro.com.br/wordpress/2011/09/26/joao-negrao-as-duas-mortes-de-toni-guineense-assassinado-em-cuiba/

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