“Odeia a mídia? Torne-se a mídia!”. Este era um dos cartazes que levantamos na I Semana pela Democratização da Comunicação da Bahia. A frase, criada pelo Centro de Mídia Independente (CMI), era mais um dos motivos que nos inspirava a criar, naquele 21 de outubro de 2005, o Instituto Mídia Étnica.
Éramos, naquela oportunidade, estudantes de comunicação de diversas faculdades de Salvador e tínhamos em comum o fato de questionarmos em nossas respectivas instituições o incipiente debate sobre racismo na comunicação.
Alguns teóricos nos davam a base que precisávamos para seguir na luta, como Muniz Sodré, Fernando Conceição, Carlos Moore e Joel Zito Araújo. Outras instituições parcerias - como o Instituto Steve Biko, Dombali e o CEAFRO - nos mostravam o complexo caminho de se fazer movimento negro dentro do chamado terceiro setor. Nossa pauta era extensa, queríamos discutir de estereótipos à propriedade dos meios de comunicação, sempre com os dois olhos voltados para a internet.
Depois de muito debate, escolhemos o nosso slogan “Vamos DeNegrir a mídia”, ou seja, tornar a mídia mais negra. No dia do lançamento, tivemos a honra da participação de importantes nomes da luta pela democratização da comunicação e do movimento negro, como a socióloga Luiza Bairros (atual ministra da Seppir), Gilmar Santiago (então secretário da Reparação), os deputados Luiz Alberto e Walter Pinheiro (hoje senador), e os já citados Carlos Moore e Joel Zito Araújo, que estava lançando seu aclamado filme Filhas do Vento.
Abrimos o evento ouvindo o ator e diretor Ângelo Flávio ler o poema “Padê de Exu Libertador”, do saudoso Abdias Nascimento, que nos ensinou que na cosmovisão iorubana é o Orixá da comunicação quem abre os caminhos. As paredes do auditório do Solar do Unhão estavam repletas de citações sobre a importância da comunicação para o desenvolvimento da comunidade negra. Frases de Milton Gonçalves, Antônio Pitanga, Zezé Mota e outros atores e atrizes militantes.
Não parece, mas a comunicação em 2005 era bem diferente do que temos agora. A chamada “grande mídia” ainda reinava arrogantemente e os dissidentes eram chamados pejorativamente de “piratas”. Blog ainda era uma palavra nova, e colocar um site “no ar” exigia um investimento considerável se comparado a hoje.
Na Califórnia, bem longe do Pelourinho onde estávamos, três jovens davam os primeiros passos para criar uma ferramenta que mudou a maneira com que nos relacionamos com o vídeo, o YouTube. A Internet a cabo havia acabado de chegar e o Orkut ainda era uma coisa de nerd – para acessar a rede era necessário ter convite.
Foi nesse contexto que começamos a usar as novas tecnologias de comunicação. Criamos nosso primeiro blog (http://midiaetnica.zip.net), comunidade no Orkut e fizemos a nossa primeira cobertura jornalística, o Dia da Consciência Negra de 2005. Cyber-Aruá foi o nome escolhido. A ideia era fazer um trocadilho com o termo “Cyber-Café” e usar uma referência afro-brasileira. Rudimentarmente usamos celular para enviar notícias das caminhadas para a equipe que ficava na Praça Municipal e atualizava o blog. Dois anos mais tarde, fomos a primeira organização negra do Brasil a escrever em 140 caracteres no Twitter.
Curiosos, queríamos saber “com quantos gigabytes se faz uma jangada, um barco que veleja” e descobrimos que “antes o mundo era pequeno porque a Terra era grande. Hoje o mundo é muito grande porque a Terra é pequena, do tamanho da antena parabolicamará”, como anteviu, em Pela Internet e Parabolicamará, o mestre Gilberto Gil, nosso ministro hacker, com o qual tivemos o orgulho de gravar o documentário Connecting South. Ê, volta do mundo, camará. Ê, mundo dá volta, camará!!!
Muitos estranhavam nossa forma de fazer política e o nosso jargão “direito humano à comunicação”. Outros acreditavam em nossa proposta e nos apoiavam de maneira incondicional. Já na esfera das organizações sociais de comunicação, o ceticismo sobre a questão racial era a regra.
De lá para cá muita coisa mudou, outras continuam iguais. A comunicação de massa (Rádio, TV e jornal) ainda é concentrada nas mãos de poucas famílias e não se tem notícia de grandes veículos de comunicação controlados por afrodescendentes. O mesmo racismo, no jornalismo ou na publicidade, continua a operar de forma sistêmica e institucional. Porém, um novo horizonte ao poucos vai se abrindo para todos os grupos sociais invisibilizados: o aumento das tecnologias digitais e o barateamento dos equipamentos eletrônicos.
Atualmente, um grupo de rap da periferia de uma cidade nordestina pode postar um vídeo no YouTube e ter mais acesso que uma edição da Folha de São Paulo. A qualidade de uma câmera que custava, em 2005, 15 mil reais, hoje pode ser acessada com um celular de R$500. É claro que isso não significa que a “grande mídia” está perdendo sua influência, mas certamente ela não é mais o único emissor de informações.
Apostamos na criação do Correio NaGô, uma rede social que tinha, em novembro de 2008, cerca de 28 pessoas cadastradas. Agora, essa rede possui mais de 5 mil membros cadastrados e milhares de visitantes por mês oriundos de mais de 50 países do mundo. O objetivo do site é disseminar a ideia do jornalismo cidadão e participativo dentro da comunidade afro-brasileira.
Cada membro do Correio Nagô é um nó dessa grande teia anti-racista. Cada post que vai ao ar é um golpe no mito da democracia racial e na crença da supremacia branca. Junto a outros sites e blogs do movimento negro estamos em constante vigilância para garantia de nossos direitos, afinal somos construtores dessa nação.
Entretanto, os desafios para o futuro são grandes. Como nos anteciparmos nas inovações tecnológicas e empreendermos projetos de impacto? Como manter e valorizar a ancestralidade africana utilizando a mídia? Como fazer com que a imprensa tradicional também seja uma promotora da igualdade racial? Como criarmos nossos veículos (rádios, TVs, jornais etc.) para mostrar nosso ponto de vista para toda a sociedade? Como garantir que os jovens afro-brasileiros produzam conteúdo? E tudo isso “do nosso jeito, sendo sujeitos”, como nos ensinou Makota Valdina Pinto.
Alguns caminhos já estão sendo apontados de maneira natural. Foi assim com as oficinas que realizamos, com o UNFPA, na comunidade de Sussuarana, em Salvador, que resultaram na criação do grupo Mídia Periférica - jovens com menos de 20 anos que lançam nessa semana um programa de TV web com o discurso afrocentrado e um olhar de periferia.
Da mesma forma, vimos alguns veículos tradicionais, com quem temos dialogado nesses seis anos, mudarem significativamente sua abordagem sobre a questão racial, entendendo que a diversidade é uma questão importante e necessária.
Desde o início da nossa organização acreditamos que a luta do negro no mundo não é isolada, ela é interconectada e interdependente, como disse o escritor Cheikh Anta Diop. Ela é a mesma em todo o planeta.
A vocação internacionalista e panafricana do Instituto Mídia Étnica nos fez cruzar fronteiras e sair da nossa “roma negra” para desbravar o mundo. Viajamos e noticiamos histórias do povo negro de lá da Nigéria, Costa Rica, Estados Unidos, Honduras, Gana, África do Sul, Inglaterra, Moçambique etc. Se no mundo pré-internet nossos ancestrais estavam interconectados por que não digitalizar esses laços que nos unem?
Sabemos que a batalha para afirmação de nossos valores estéticos e civilizatórios não vai acabar tão cedo. A desconstrução dos modelos eurocentrados da mídia vai além dos nossos limites, mas temos a honra de fazer parte dessa geração que vem, a cada dia, tentando assumir a tarefa passada por aqueles que deram sangue e suor para que estivéssemos vivos.
Que nessa Semana da Democratização da Comunicação possamos pensar juntos como alcançar nossos objetivos e, citando a socióloga Vilma Reis, “fazer comunicação fora do controle da Casa-Grande”.
Saquemos, portanto, nossos gravadores e tablets, armemo-nos com nossos tripés e lentes, preparemos nossas câmeras e celulares, pois a batalha pela informação está apenas começando.
Paulo Rogério Nunes é co-fundador do Instituto Mídia Étnica
TONTE: Correio Nagô
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