Ministro nega que seja "encrenqueiro", mas diz que não se cala quando vê algo errado
    FREDERICO VASCONCELOS
    ENVIADO ESPECIAL A BRASÍLIA
"ENGANARAM-SE os que pensavam que o Supremo Tribunal Federal iria ter um negro submisso, subserviente", diz o ministro Joaquim Barbosa, ao comentar os desentendimentos com alguns de seus pares -como Marco Aurélio, Gilmar Mendes e Eros Grau. Ele atribui os atritos à defesa que faz de "princípios caros à sociedade", como o combate à corrupção. Barbosa entrou em choque com ministros tidos como "liberais" em julgamentos da Operação Anaconda. Ficou conhecido popularmente como relator do inquérito do mensalão e recentemente discutiu com Eros Grau sobre a liberação de um preso da Operação Satiagraha.
FOLHA - A mídia o aponta como o  ministro que mais se desentende  com os colegas. O sr. é uma pessoa  de temperamento difícil?
JOAQUIM BARBOSA - Engano pensar que sou uma pessoa que  tem dificuldade de relacionamento, uma pessoa difícil. Eu  sou uma pessoa altiva, independente e que diz tudo que  quer. Se enganaram os que  pensavam que, com a minha  chegada ao Supremo Tribunal  Federal, a Corte iria ter um negro submisso.  Isso eu não sou e nunca fui  desde a mais tenra idade. E tenho certeza de que é isso que  desagrada a tanta gente. No  Brasil, o que as pessoas esperam de um negro é exatamente  esse comportamento subserviente, submisso. Isso eu combato com todas as armas.  
FOLHA - Gilmar Mendes chegou a  dizer que o sr. "tem complexo". A  ministra Carmen Lúcia insinuou que  haveria um "salto social", com sua  evidência no caso do mensalão. Como o sr. recebe esses comentários?
BARBOSA - A imprensa se esquece de dizer quais foram as razões pelas quais eu tive certos desentendimentos. Quase sempre foram desentendimentos nos quais eu estava defendendo princípios caros à sociedade brasileira, como o combate à corrupção no próprio Poder Judiciário. Sem aquela briga com o ministro Marco Aurélio, o caso Anaconda não teria condenação e cumprimento de penas pelos réus. 
FOLHA - No julgamento de uma  ação da Anaconda houve o comentário de que o sr. teria "complexo"...
BARBOSA - Achei apropriado  naquele momento dar uma resposta dura. Falaram que eu sou  encrenqueiro. Eu tenho amigos  espalhados pelo Brasil e pelo  mundo inteiro. São pessoas decentes. E eu não costumo silenciar quando presencio algo de  errado, ainda que no âmbito do  tribunal ao qual eu pertenço.  
FOLHA - O sr. se sente isolado no  Supremo?
BARBOSA - Nem um pouco. Eu  tenho meu leque de amizades,  que são pessoas que têm afinidades comigo, com aquilo que  eu gosto, que não necessariamente coincide com o gosto da  maioria do tribunal. Mas tenho  boa relação com ministros.  
FOLHA - Uma crítica recorrente é  que o Supremo favorece as elites.  Como o sr. vê essa observação?
BARBOSA - Eu ainda não amadureci a minha reflexão sobre  isso. Mas há uma coisa que me  perturba, que me deixa desconfortável aqui no tribunal e na  Justiça brasileira como um todo. É o fato de que certas elites,  certas categorias monopolizam, sim, a agenda dos tribunais. Isso não quer dizer que eu  esteja de acordo com a frase de  que o tribunal favorece as elites. Monopolizam a agenda.  
FOLHA - Como isso ocorre?
BARBOSA - Nós temos na Justiça brasileira o sistema de preferência, tido como a coisa mais  natural do mundo. O advogado  pede audiência, chega aqui e  pede uma preferência para julgar o caso dele. O que é essa  preferência? Na maioria dos  casos, é passar o caso dele na  frente de outros que deram entrada no tribunal há mais tempo. Se o juiz não estiver atento a  isso, só julgará casos de interesse de certas elites, sim. Quem é  recebido nos tribunais pelos  juízes são os representantes  das classes mais bem situadas.  Eu não posso avalizar inteiramente essa frase [de que o Supremo favorece as elites], mas  acho que um país em que a Justiça está completamente abarrotada tem que ter atenção  muito grande para esse perigo  de que a agenda dos tribunais  seja monopolizada por certos  segmentos sociais. Basta prestar a atenção, durante cada ano,  no tempo que o STF gasta julgando questões de interesse  corporativo. É enorme.  
FOLHA - O sr. costuma receber advogados em seu gabinete?
BARBOSA - Recebo, mas nenhum advogado, por mais importante que ele seja, monopoliza o meu gabinete [o ministro  informa que concedeu 244 audiências, em 2006 e 2007].  
FOLHA - Sua decisão de quebrar o  sigilo do inquérito do mensalão contribuiu para a abertura do Supremo  à sociedade. Quais os aspectos positivos e negativos dessa exposição?
BARBOSA - Eu acho que o lado  bom é o pedagógico. Aproxima  o tribunal da sociedade. Quebra  com uma tradição tipicamente  brasileira, ainda forte, de o juiz  estar distante do cidadão. O tribunal entra nos lares dos brasileiros. As questões importantes  da cidadania são debatidas, são  absorvidas pelo cidadão. Acho  isso muito positivo. O lado negativo disso é que essa superexposição traz uma carga de pressão muito grande em cima do  tribunal. Essa hiper-exposição  atrai cada vez mais demandas  para o Supremo. Uma tendência natural de outros poderes e  de segmentos da sociedade é  pensar que tudo pode ser resolvido no Supremo. Não é tão fácil assim vir até o Supremo, e é  extremamente caro.  
FOLHA - Diante das decisões recentes do tribunal, alguns juízes dizem  que o Supremo está se distanciando  da sociedade, do mundo real.
BARBOSA - Teoricamente, acho  que isso possa existir. Não quero falar sobre decisões. Em tese, o juiz não pode se desgrudar  da sociedade. Ele não pode desprezar os valores mais caros da  sociedade na qual opera. Seria  suprema arrogância -e isso eu  noto em alguns juízes brasileiros- achar que não interessa o  que a sociedade pensa sobre determinadas decisões. O juiz é  fruto do seu meio. Seria o supra-sumo da arrogância entender que o juiz poderia ter uma  escala de valores que não leve  em conta o sentimento da sociedade sobre questões que lhe  são trazidas para decidir. Em  um sistema judiciário que não  leva em consideração o sentimento da sociedade sobre determinadas questões, a tendência é ele perder credibilidade e  se transformar em monstrengo  inútil, do ponto de vista institucional, a médio ou longo prazo.  
FOLHA - O Supremo carece de especialistas em direito penal?
BARBOSA - Eu discordo. O Supremo não precisa de especialistas em direito penal. É verdade que na atual composição não  há especialistas em direito penal. Mas uma pessoa com uma  boa formação em direito público, com uma boa formação humanística, uma boa visão de  mundo, que não seja paroquial,  é isso que se espera do membro  de uma Corte Suprema e não  uma especialização exacerbada  nesta ou naquela matéria. O  que se espera é, sobretudo, prudência. Uma clara visão da sociedade.  
FOLHA - Quantos membros do Supremo já interrogaram réus?
BARBOSA - Isso é irrelevante.  Eu presido quatro grandes processos criminais, jamais vistos  na história do tribunal. Eu não  vou interrogar ninguém. Eu delego. Eu não preciso interrogar.  A lei me dá esse poder. Não é  uma corte para resolver questões pontuais. É um tribunal  que julga casos com profunda  repercussão na sociedade. Aqui  não se cuida do varejo. Já interroguei réus. Fui procurador da  República por 19 anos. Minha  especialização é direito público, mas isso é bobagem, não  tem a menor relevância.  
FOLHA - Em que medida o foro privilegiado dificulta uma avaliação  mais precisa do Supremo?
BARBOSA - Eu acho o foro privilegiado nefasto. O foro privilegiado e outras medidas são processos de racionalização da impunidade. Já disse e repito. 
BARBOSA - O Supremo é bem mais rigoroso em matéria penal em geral. O tribunal tem a tradição de mais rigor, nesses últimos anos. Vejamos o caso do mensalão. Com a importância do STF, com o número de causas e problemas seríssimos que tem para resolver, é racional que o tribunal gaste cinco dias inteiros só para julgar o recebimento de uma denúncia? Com todas as dificuldades que o Brasil inteiro assistiu ao vivo?
O recebimento de uma denúncia como aquela, no primeiro grau, seria um despacho de duas páginas.
 
 
   
 






