Morreu na segunda-feira 10, de insuficiência respiratória, em Londres, o documentarista Adrian Cowell. Com um trabalho histórico de registro da destruição da Amazônia, ele estava vindo ao Brasil, onde chegaria dia 12, para finalizar a versão brasileira do filme Killing For Land (Matando pela terra, em tradução livre), inédito aqui, que aborda a violência no sul do Pará. Aos 77 anos, Cowell seguia filmando.
Cowell foi companheiro dos irmãos Villas Boas em expedições antes mesmo da criação do Parque Indígena do Xingu, registando tanto o cotidiano dos índios, quanto o trabalho dos sertanistas e as ameaças, por garimpeiros e fazendeiros. Trabalhou também com Apoena Meirelles, outro grande sertanista, no contato dos índios uru-eu-wau-wau, em Rondônia. Filmou, quase ininterruptamente, por 50 anos no Brasil. Seu trabalho começou em 1958, quando ainda era estudante. Foi mais intenso, sobretudo, nos anos 1980, quando fez a premiada série para TV “A Década da Destruição. E todo o seu trabalho, que são mais de sete toneladas de filmes, foi doado para a PUC de Goiás, para o Brasil, onde a consulta está disponível. O Acervo Adrian Cowell é um material fabuloso constituído de filmes 16 mm, fitas de vídeo, áudios, cassetes, slides e diários de campo sobre a Amazônia. (Informações no site http://imagensamazonia.pucgoias.edu.br/)
Cowell produziu o maior registro documental da memória da Amazônia nesse período. “Tem coisas que não existem em lugar nenhum, que não está escrito, mas está registrado apenas pelo trabalho do Adrian. E ele doou de volta para o Brasil”, diz Stella Penido, da Fiocruz, que auxiliava a restauração dos filmes. “Era incansável. E ele estava vindo ao Brasil, morreu trabalhando.” Amiga pessoal, diz Stella: “A vida dos seres humanos é como um trabalho de tecedura. Termina o trabalho com delicados fios, tecidos do inicio ao fim (Buda). Acho que não é nenhum exagero pensar que a vida do Adrian foi um bonito trabalho tecido com delicados e atentos fios do inicio ao fim. (obrigada, querido Adrian)”.
Vicente Rios, seu câmera, co-diretor no Brasil e que se tornou seu grande parceiro de trabalho a partir da “Década da Destruição”, está concluindo um documentário sobre Cowell, que vai se chamar “Visões da Amazônia”. “Faltava duas ou três frases, que ele iria completar agora”, disse Rios, chocado pela notícia. O filme, que contém cenas de bastidores das filmagens e também a visão de Cowell sobre a natureza, inclui sequencias inéditas como Cowell conversando com Orlando Villas Bôas sobre a memória de ambos dos tempos do Xingu, na casa do sertanista, em São Paulo.
Adrian Cowell nasceu em Tongshan na China, em 2 de fevereiro de 1934, e concluiu seus estudos na Universidade de Cambridge. Em um encontro que tivemos, no Rio de Janeiro, ele me explicou com um característico sotaque britânico, que aprendeu a falar português com o cacique Raoni. Em suas lembranças, sempre falava bem humorado, e extremamente dedicado e fiel tanto a seus princípios humanitários, quanto a seus parceiros, como os sertanistas, amigos índios, seringueiros.
Por um longo período, ele alternou viagens entre áreas de conflito na Amazônia e Myanmar, filmando a guerra civil no país, que viria a ser o objeto da série Opium, filmada ao longo de oito anos.
Quando Adrian Cowell decidiu filmar a destruição da Amazônia, em um trabalho documental de fôlego inigualável, tudo podia acabar. Os índios, os seringueiros, a floresta. A Amazônia em sua totalidade. O trator do desenvolvimento, em curso e a todo vapor durante a ditadura militar, queria trazer o progresso, ou a idéia de “um progresso”, sobre um território visto como hostil e inabitado. Mas haviam os índios, os seringueiros e a biodiversidade no caminho. Na década de 1980, “nunca tanta matéria viva foi queimada como em Rondônia em toda a história”, apresenta o narrador de “A Floresta que virou Cinza”, da premiada série de cinco filmes chamada “A Década da Destruição”, em que ele filmou, ao longo de dez anos, a maior destruição já vista de um ambiente. Ganhou reconhecimento público em premiações como da British Academy (BAFTA), o Emmy Founders e o Golden Gate.
“A Década da Destruição” é o maior projeto de documentação da devastação da Amazônia jamais realizado. A seriedade, o comprometimento demonstrado pelo documentarista ao longo dos dez anos, surpreendem pelo acompanhamento incansável das histórias dos personagens, que são acompanhados por esse período. Também a coragem, como nas filmagens de tiroteios entre posseiros de terra e pistoleiros, em festas e tiroteios em garimpos, como o registro de um garimpeiro morto por um tiro de fusil, a escravidão na produção de carvão, ameaças de fazendeiros.
Enquanto ainda era pouco conhecido pela imprensa brasileira, Chico Mendes já era filmado por Cowell, tanto os empates que fazia nos seringais, quanto em reuniões internacionais. Amigo pessoal do seringueiro, o filme, “Chico Mendes, eu quero viver”, foi concluído em 1991. O mesmo com o Padre Josimo, assassinado no Tocantins.
Em um email, escrito há três semanas, ele me disse, comentando a recente onda de assassinatos no sul do Pará: “Sem dúvida estes assassinatos possuem alguma influencia um sobre o outro. Antes de nossa proposta de filmar Chico, fiz uma decisão para a serie A Década da Destruição. Decidi que foi essencial mostrar o motivo porque tantos colonos estavam invadindo as florestas amazônicas. Resolvi fazer um filme sobre as brigas para terra em Para. Fui com Vicente Rios ao Sul de Para para encontrar com Padre Josimo – um padre negro de CPT. Combinamos de filmar o trabalho e vida dele, mas antes que desse tempo para iniciar a filmagem,, ele foi assassinado. Logo depois, encontramos Chico e combinamos filmar ele (Chico viria a ser morto ao longo das filmagens) Padre Josimo foi um caso famoso naquele tempo e tenho ainda um foto do Chico fazendo um comício num seringal embaixo de um foto do Josimo”
Uma outra série de extremo fôlego é “Os últimos isolados”, sobre os povos indígenas que vivam, ainda isolados, na floresta, enquanto se produzia a ocupação engendrada pelo regime militar. O documentarista acompanhou de perto o trabalho dos sertanistas da Funai, descrevendo o entorno dos territórios onde viviam os índios ameaçados – e que deveriam travar o primeiro contato com a sociedade ocidental. A “Destruição do Índio”, outra série memorável, reporta a difícil relação entre os povos indígenas e a colonização.
Rever o trabalho de Adrian Cowell hoje é explorar as mazelas que marcaram a exploração e a devastação da Amazônia desde o início da sua ocupação recente, engendrada durante a Ditadura. A obra que deixou vai ensinar muitas gerações de brasileiros a compreender melhor o país em que vivem – e que está sendo destruído.
FONTE: Carta Capital