Neuza Maria Alves da Silva, nasceu em Salvador, tomou posse como desembargadora do Tribunal Regional Federal da 1ª Região em 17 de dezembro de 2004, promovida pelo critério de merecimento. Seu ingresso na magistratura federal se deu em agosto de 1988, quando assumiu a titularidade da 2ª Vara da Seção Judiciária do Estado de Rondônia e exerceu a função provisória de Juíza auxiliar junto à 1ª Vara da Seção Judiciária do Estado da Bahia. Em outubro do mesmo ano se tornou Juíza Federal Titular da 8ª Vara Federal e em maio de 1989 assumiu a titularidade plena da 5ª Vara Federal. A desembargadora graduou-se em Direito pela Universidade Federal da Bahia em 1974. Especializou- se, ainda, em Processo Civil, Processo Penal e Direitos Humanos. O caminho até a magistratura foi longo e, muitas vezes, segundo ela própria, espinhoso. Mas, os obstáculos ganharam sabor de desafio. Os sonhos viraram obsessão. Hoje, é apaixonada pelo que faz. Determinada, a desembargadora tem diálogo fácil e acessível. De pronto, apesar da agenda cheia, aceitou conceder esta entrevista. Sem meias palavras contou casos, fez análises, relembrou sua história. O resultado do bate-papo está aí, com exclusividade, para os leitores de "O Magistrado em Revista".
O Magistrado - Que tipo de sentimento ostenta ao saber que é a primeira Desembargadora negra do país?
Neuza Maria - É um misto de perplexidade e euforia, de lamento e alegria, haja vista que sei da existência de várias pessoas, homens e/ou mulheres, negros, que reúnem as condições necessárias para ocupar lugar de destaque no cenário nacional, em todos os campos do conhecimento humano, mas encontram barreiras vindas de diversas direções a impedir esse reconhecimento. Busquei muito a minha nomeação e pude perceber que os muros são altos, as pedras no caminho são enormes, os fossos cavados são profundos. Mas valeu a pena! Espero firmemente que outros profissionais portadores das minhas e de outras "diferenças" se sintam motivados a tentar ascender na escala profissional, primando sempre pela sua capacitação e dispostos a enfrentar os percalços decorrentes dos desafios naturais advindos da ousadia. É necessário acreditar que podemos. E seguir em frente.
Neuza Maria - É um misto de perplexidade e euforia, de lamento e alegria, haja vista que sei da existência de várias pessoas, homens e/ou mulheres, negros, que reúnem as condições necessárias para ocupar lugar de destaque no cenário nacional, em todos os campos do conhecimento humano, mas encontram barreiras vindas de diversas direções a impedir esse reconhecimento. Busquei muito a minha nomeação e pude perceber que os muros são altos, as pedras no caminho são enormes, os fossos cavados são profundos. Mas valeu a pena! Espero firmemente que outros profissionais portadores das minhas e de outras "diferenças" se sintam motivados a tentar ascender na escala profissional, primando sempre pela sua capacitação e dispostos a enfrentar os percalços decorrentes dos desafios naturais advindos da ousadia. É necessário acreditar que podemos. E seguir em frente.
O Magistrado - Existe discriminação quanto ao negro no Brasil? Neuza Maria - Só não enxerga quem não quer ver. As atitudes veladas são as mais perversas; mas existem inúmeros exemplos que configuram a discriminação explícita, embora aqueles aos quais a correção do problema não interessa, teimem em enquadrar a situação no campo da segregação social. Em verdade, quem sente na pele os efeitos da apartação, sabe que ela existe e está longe de ser debelada. Pessoalmente, já sofri demais com essas atitudes ora preconceituosas, ora racistas, ora discriminatórias, mas optei por ignorá-las solenemente e seguir sempre em frente, usando o sofrimento gerado por algumas dessas atitudes, como escadas para atingir o patamar superior, como estímulo para estudar mais e trabalhar cada vez melhor, sendo essa a resposta que meus opositores tiveram, ao longo do tempo. Isso não significa que vou deixar de reagir ou de denunciar quando entender que fui alvo de conduta criminosa típica, dispondo de provas, com o fito de punir eventuais transgressores das leis a respeito da problemática do negro.
O Magistrado - Quais obstáculos enfrentou da vida escolar até a magistratura?
Neuza Maria - Como pude freqüentar a escola pública de qualidade, que me deu condições de disputar mercado de trabalho independentemente de ter família tradicional, sobrenome de peso ou uma imagem física considerada privilegiada, fiz opção pela forma mais democrática de realização profissional que foi enfrentar os concursos públicos de provas e títulos que me abriram as portas para trabalhar como Advogada de uma sociedade de economia mista (RFFSA), depois como Juíza do Trabalho (TRT-5a Reg. BA) e por último como Juíza Federal (SJBA), cargo que exerci por mais de dezesseis anos até encarar a possibilidade de ser promovida ao cargo de Desembargadora Federal, por merecimento, junto ao Tribunal Regional Federal da 1a. Região, sediado em Brasília. É impossível descrever os obstáculos enfrentados emtoda essa trajetória, mas posso referir, principalmente, o fator econômico, a dificuldade de acesso à informação, a impossibilidade de diversificar as áreas de aprendizado com viagens, cursos, mestrado, doutorado, o dever de criar filhos e ajudar parentes menos favorecidos ainda, como arrimo de família, entre muitos outros fatores que normalmente levam as pessoas a desistirem até mesmo de sonhar.
Neuza Maria - Como pude freqüentar a escola pública de qualidade, que me deu condições de disputar mercado de trabalho independentemente de ter família tradicional, sobrenome de peso ou uma imagem física considerada privilegiada, fiz opção pela forma mais democrática de realização profissional que foi enfrentar os concursos públicos de provas e títulos que me abriram as portas para trabalhar como Advogada de uma sociedade de economia mista (RFFSA), depois como Juíza do Trabalho (TRT-5a Reg. BA) e por último como Juíza Federal (SJBA), cargo que exerci por mais de dezesseis anos até encarar a possibilidade de ser promovida ao cargo de Desembargadora Federal, por merecimento, junto ao Tribunal Regional Federal da 1a. Região, sediado em Brasília. É impossível descrever os obstáculos enfrentados emtoda essa trajetória, mas posso referir, principalmente, o fator econômico, a dificuldade de acesso à informação, a impossibilidade de diversificar as áreas de aprendizado com viagens, cursos, mestrado, doutorado, o dever de criar filhos e ajudar parentes menos favorecidos ainda, como arrimo de família, entre muitos outros fatores que normalmente levam as pessoas a desistirem até mesmo de sonhar.
O Magistrado - Por que tão poucos negros ocupam cadeiras na magistratura e no Ministério Público? A Justiça do país é elitista?
Neuza Maria - A questão não é tão simples assim. Não discuto se a Justiça do país é ou não elitista, pois considero esse fato resultado de um conjunto de fatores existentes dentro e fora do Poder Judiciário, a partir do processo histórico consistente na tentativa de incutir no próprio negro a falsa idéia de que ele não é, não pode, não tem, não merece! O que deveria ser considerado absolutamente normal, num universo como o da Bahia, com população majoritariamente formada por afro-descendentes, passa a ser ousadia, feito inédito e coisas que tais. Basta fazer uma simples pesquisa fotográfica em cada turma de formandos em cursos superiores: às vezes dois ou três desses universitários são negros. Principalmente nos cursos de Medicina, Direito, Odontologia, Engenharia e outros tidos como de destaque. Se somos poucos na graduação, o que dizer então da pós-graduação, mestrado e doutorado? Mas não é só isso! Para além dessa realidade, não é difícil encontrar exemplos daqueles que romperam as barreiras, superaram os obstáculos, capacitaram- se e mesmo assim são desestimulados por conta da necessidade imediata de sustentar-se a si próprio e à família, sem tempo para se dedicar ao estudo sistematizado que permitiria disputar vaga em igualdade de condições. Para ser aprovado em concursos do porte dos que foram citados, necessário se faz, antes de qualquer coisa, dedicação ao extremo, o que implica afastamento de outras atividades ou diminuição do ritmo de trabalho em busca da sistematização do estudo direcionado ao objetivo traçado, de conquistar o merecido lugar ao sol.
Neuza Maria - A questão não é tão simples assim. Não discuto se a Justiça do país é ou não elitista, pois considero esse fato resultado de um conjunto de fatores existentes dentro e fora do Poder Judiciário, a partir do processo histórico consistente na tentativa de incutir no próprio negro a falsa idéia de que ele não é, não pode, não tem, não merece! O que deveria ser considerado absolutamente normal, num universo como o da Bahia, com população majoritariamente formada por afro-descendentes, passa a ser ousadia, feito inédito e coisas que tais. Basta fazer uma simples pesquisa fotográfica em cada turma de formandos em cursos superiores: às vezes dois ou três desses universitários são negros. Principalmente nos cursos de Medicina, Direito, Odontologia, Engenharia e outros tidos como de destaque. Se somos poucos na graduação, o que dizer então da pós-graduação, mestrado e doutorado? Mas não é só isso! Para além dessa realidade, não é difícil encontrar exemplos daqueles que romperam as barreiras, superaram os obstáculos, capacitaram- se e mesmo assim são desestimulados por conta da necessidade imediata de sustentar-se a si próprio e à família, sem tempo para se dedicar ao estudo sistematizado que permitiria disputar vaga em igualdade de condições. Para ser aprovado em concursos do porte dos que foram citados, necessário se faz, antes de qualquer coisa, dedicação ao extremo, o que implica afastamento de outras atividades ou diminuição do ritmo de trabalho em busca da sistematização do estudo direcionado ao objetivo traçado, de conquistar o merecido lugar ao sol.
O Magistrado - É a favor das cotas para negros nos bancos das Universidades como já acontece em Brasília? Neuza Maria - Já tive oportunidade de declarar: não se trata, hoje, de ser contra ou a favor. Temos que entender que esse é um caminho, embora não o único, em direção ao resgate da cidadania do povo negro, tão espezinhado e quase reduzido à condição de coisa, ao longo dos séculos de escravidão e mesmo após a "libertação", assim, entre aspas, diante de que não se cuidou de devolver ao escravo, jamais, qualquer parcela do muito que lhe foi usurpado, largado que foi à própria sorte, em seguida à abolição da escravatura, no papel. Na minha visão o sistema de cotas pode e deve ser aperfeiçoado, corrigindo rumos, a partir da apuração dos resultados que vier a proporcionar, mas as críticas que comumente são endereçadas às unidades que o estão adotando não passam de palavras vãs, tentativas desesperadas de deixar tudo como está, desde que não incomode nem ameace o grupo dominante que não sente falta de nada - só sabe olhar para a própria sombra. O sistema de cotas visa à inclusão do negro na vida do grupo social ao qual pertence, devendo ser incentivado seja na educação, no mercado de trabalho, nos meios de comunicação e propaganda, na saúde, na política, a fim de se resgatar a sua plena condição de cidadão.
O Magistrado - E as mulheres sofrem discriminação? Neuza Maria - A questão da mulher vem sendo debatida com mais força e com mais tenacidade, graças à atuação destacada das ilustres representantes dos movimentos oriundos da sociedade civil organizada, como associações profissionais, conselhos estaduais e municipais, programas oriundos de diversas organizações nacionais, internacionais e principalmente pela força e coragem de militantes femininas no Congresso Nacional, nas ONGs e em todas as camadas da população, inclusive a mais pobre. Os avanços são evidentes, mas por outro lado desnudam a verdade que estava sendo posta sob o tapete. Tanto a discriminação contra o negro, como a que se volta contra a mulher, merecem, sim, medidas contundentes, ainda que impliquem discriminação (positiva), visando reverter o quadro existente (falta de oportunidade no aprimoramento intelectual, desigualdade de emprego e renda, inexistência de salvaguarda de direitos), para que seja possível pensar-se em igualdade num futuro que, espero, não seja tão distante. Interessante observar a diferença de postura com relação ás minorias: nunca ouvi ninguém verberar com veemência contra as cotas para a mulher na participação política ou contra a cota para deficientes físicos nos concursos patrocinados pelo governo...
O Magistrado - Acha que o Conselho Nacional de Justiça que está sendo montado vai interferir negativamente nos trabalhos do Judiciário? Neuza Maria - Espero firmemente que não, embora não possa avaliar a intenção que presidiu a idéia de criação do Conselho. Eu explico: tem sido comum o discurso de que a culpa por não termos um judiciário modelo, é dos Juízes. Ledo engano! Se o CNJ vier de espírito aberto, disposto a apurar e solucionar os problemas do judiciário, pelo menos na parte da culpa que a ele, judiciário, cabe, já é um grande passo na conquista das melhorias possíveis de se alcançar. Entretanto, se permitir ingerências espúrias e distanciadas do verdadeiro propósito de crescimento e fortalecimento dos diversos órgãos a ele subordinados, será o caos. Até aqui, pelo que tenho observado, a composição do CNJ sinaliza para a existência de um órgão sério, não manipulável, não submisso, não perseguidor. Torço para que ele desempenhe seu papel com maestria e rejeite qualquer tentativa de subordinar as decisões judiciais à satisfação de interesses menores, hipótese em que haveria,sim, interferência não só negativa como abjeta.
O Magistrado - É a favor que crimes como o da missionária Doroty Stang sejam julgados pela Justiça Federal?
Neuza Maria - Sou a favor de que os crimes, todos eles, sejam julgados. Não tenho o direito de ser preconceituosa e achar que esse ou aquele órgão do Poder Judiciário é mais capaz, mais independente, mais sério de que o outro. Necessitamos, urgentemente, definir repartição de competência, isto sim, sem brigas intestinas que revelem disputas sobre "fatias de poder". O Poder Judiciário tem que ser íntegro, aparelhado, célere, competente - não procurar holofotes, porque essa não é a nossa missão. Seja de quem for a tarefa de levar esses crimes a julgamento, o importante é que o faça com dignidade, sem permitir o concurso de influência política ou de interesses financeiros. O Magistrado - O Executivo e o Legislativo dão indícios de desgaste. Isso pode se refletir no Judiciário?
Neuza Maria - O desgaste é da nação! Bons e maus profissionais existem em toda esfera de poder. É certo que só posso falar com conhecimento de causa, da realidade que vivencio, vale dizer, do Poder Judiciário que vem sofrendo enxovalhos até por problemas aos quais não deu causa, injustamente! Somente a título de exemplo, lembro a questão dos pagamentos dos débitos pela via crucis do precatório: a justiça certifica o direito, as partes recorrem a todas as instâncias, os processos levam anos para alcançar o chamado trânsito em julgado, inicia-se o doloroso processo de execução e depois não se segue o pronto pagamento... aguarda-se a fila para recebimento via precatório de requisição. Muitas mazelas do Judiciário são causadas por fatores exógenos, como a pletora de feitos ajuizados diariamente, em decorrência dos descompassos governamentais, em todas as áreas; a grande quantidade de recursos e sua utilização aviltada; a falta de lealdade processual das partes envolvidas, entre muitos outros. O Judiciário precisa de ajuda, não de detratores!
Neuza Maria - Sou a favor de que os crimes, todos eles, sejam julgados. Não tenho o direito de ser preconceituosa e achar que esse ou aquele órgão do Poder Judiciário é mais capaz, mais independente, mais sério de que o outro. Necessitamos, urgentemente, definir repartição de competência, isto sim, sem brigas intestinas que revelem disputas sobre "fatias de poder". O Poder Judiciário tem que ser íntegro, aparelhado, célere, competente - não procurar holofotes, porque essa não é a nossa missão. Seja de quem for a tarefa de levar esses crimes a julgamento, o importante é que o faça com dignidade, sem permitir o concurso de influência política ou de interesses financeiros. O Magistrado - O Executivo e o Legislativo dão indícios de desgaste. Isso pode se refletir no Judiciário?
Neuza Maria - O desgaste é da nação! Bons e maus profissionais existem em toda esfera de poder. É certo que só posso falar com conhecimento de causa, da realidade que vivencio, vale dizer, do Poder Judiciário que vem sofrendo enxovalhos até por problemas aos quais não deu causa, injustamente! Somente a título de exemplo, lembro a questão dos pagamentos dos débitos pela via crucis do precatório: a justiça certifica o direito, as partes recorrem a todas as instâncias, os processos levam anos para alcançar o chamado trânsito em julgado, inicia-se o doloroso processo de execução e depois não se segue o pronto pagamento... aguarda-se a fila para recebimento via precatório de requisição. Muitas mazelas do Judiciário são causadas por fatores exógenos, como a pletora de feitos ajuizados diariamente, em decorrência dos descompassos governamentais, em todas as áreas; a grande quantidade de recursos e sua utilização aviltada; a falta de lealdade processual das partes envolvidas, entre muitos outros. O Judiciário precisa de ajuda, não de detratores!
O Magistrado - Que análise faz do cenário político que vivemos hoje? O brasileiro deve sonhar com dias mais prósperos?
Neuza Maria - Sonhar é preciso, mas realizar é fundamental. O presente espaço não comporta análise do cenário político brasileiro, nem eu estou habilitada para tanto, vez que, segundo entendo, necessário seria dispor de informações fidedignas oriundas dos diversos ambientes que detêm o poder de decisão na condução das políticas públicas; para poder oferecer a avaliação solicitada, precisaria conhecer com profundidade as vontades políticas que dão o norte na direção dos destinos do país. Só me resta dizer que eu acredito num futuro melhor. Não sei quando, nem de que forma esse objetivo será alcançado, mas um caminho eu considero seguro: o do investimento em educação, maciçamente, corajosamente, comprometidamente, responsavelmente. Fora daí, ficaremos apenas no sonho.
Neuza Maria - Sonhar é preciso, mas realizar é fundamental. O presente espaço não comporta análise do cenário político brasileiro, nem eu estou habilitada para tanto, vez que, segundo entendo, necessário seria dispor de informações fidedignas oriundas dos diversos ambientes que detêm o poder de decisão na condução das políticas públicas; para poder oferecer a avaliação solicitada, precisaria conhecer com profundidade as vontades políticas que dão o norte na direção dos destinos do país. Só me resta dizer que eu acredito num futuro melhor. Não sei quando, nem de que forma esse objetivo será alcançado, mas um caminho eu considero seguro: o do investimento em educação, maciçamente, corajosamente, comprometidamente, responsavelmente. Fora daí, ficaremos apenas no sonho.
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