Será que     eu falei
   O que ninguém ouvia?
   Será que eu escutei
   O que ninguém dizia?
   Eu não vou me adaptar
   Me adaptar...
        (Titãs)
         
        “Como     foi que chegamos a departamentos cheios de acadêmicos     infantilizados?”
        “A     sabedoria de hoje diz: não formule grandes questões; não pergunte     por que as coisas são como são”
        “Gente     demais acredita hoje que o trabalho intelectual diz respeito apenas     a postos e promoções”
            “Enquanto aceitarmos esse sistema, permaneceremos dentro da baleia”
        (Lindsay     Waters, 2006, p.36, 53, 81 e 83
         
        À guisa de alerta!
        Ao contrário do que poderíamos imaginar,     o homo academicus é muito suscetível à crítica. No ambiente     universitário ardem as chamas das doutas vaidades e a racionalidade     dita científica mascara sentimentos mesquinhos. Entre nós, os     intelectuais, o narcisismo tende a ser acentuado e talvez isto     contribua para compreendermos os melindres observáveis em nosso     meio. Vaidade das vaidades!    
        A necessidade de distinção     não algo restrito ao egocentrismo individual, mas uma necessidade     inerente ao campo acadêmico.     Não se trata, portanto, de identificar e condenar os pecadores, mas     de analisar os pecados – e todos estamos sujeitos a cometê-los.     Estas reflexões, bem claro, não se dirigem nem é uma peça acusatória     a qualquer indivíduo em especial. Se a carapuça servir e encontre     quem a vista, a culpa não é minha. O objeto, contudo, é o campo     acadêmico; o objetivo é analisá-lo numa perspectiva crítica, com a     esperança de contribuir para a auto-análise coletiva.     
        Maurício Tragtenberg
        Em 1978, no I Seminário de Educação     Brasileira, realizado em Campinas (SP), Maurício Tragtenberg     falou sobre a “delinqüência acadêmica”. O jornalista Laerte Ziggiati     registrou: 
                   “Porém, no meio de muita discussão teórica, houve um momento em      que grande parte do público presente explodiu em aplausos. Foi      quando encerrou sua comunicação o professor Maurício Tragtenberg,      da Faculdade de Educação da Unicamp e da Escola de Administração      de Empresas de São Paulo (FGV). Maurício Tragtenberg, com sua      longa experiência, rasgou o verbo e com grande coragem deu um      retrato fiel e ao mesmo tempo sombrio da situação crítica da      Universidade brasileira.”                
    
        Tragtenberg, então, chamava a atenção de     que a universidade não é neutra, mas sim uma instituição que     expressa interesses e as contradições inerentes à sociedade. A     universidade, porém, tende a obscurecer esse caráter pela afirmação     da ideologia de um saber aparentemente neutro, que seria “objetivo”     e “científico” e estaria acima dos antagonismos sociais.              Ele enfatiza o caráter classista da universidade. O saber legitimado     no campus não é um saber ingênuo, desprovido da influência das     relações de poder. Sua estrutura burocrática e autoritária fortalece     a ordem e o poder, influencia o corpo docente e discente e é     referência para a práxis no campus. Tanto professores quanto     alunos reproduzem-na cotidianamente, dentro e fora da sala de aula.
        Na universidade predomina o     especialista. Ela produz uma espécie de taylorismo intelectual, com     a divisão do conhecimento em disciplinas estanques e a     instrumentalização do saber aplicado a fins empresariais e     militares. Dessa forma, a universidade submeteu-se à racionalidade     capitalista, transformando-se numa instituição tecnocrática. Sua     função é formar os que contribuirão para a manutenção da ordem,     fundada no despotismo nos locais de trabalho e no controle político     e social abrangendo toda a sociedade. Seus institutos de pesquisa,    
              “cria[m] aqueles que deformam os      dados econômicos em detrimento dos assalariados; nas suas      escolas de direito, forma[m] os aplicadores de legislação de      exceção; nas escolas de medicina, aqueles que irão convertê-la      numa medicina do capital ou utilizá-la repressivamente contra os      deserdados do sistema. Em suma, trata-se de um “complô de bela      almas” recheadas de títulos acadêmicos, de doutorismo      substituindo o bacharelismo, de uma nova pedantocracia, da      produção de um saber a serviço do poder, seja ele de que espécie      for” (TRAGTENBERG, 1990, p.11).
    
        A universidade reproduz os valores     predominantes na sociedade pela seleção e transmissão de     conhecimentos legitimados     institucionalmente; sua estrutura e pedagogia burocrática contribuem     para a formação de indivíduos submissos, servis e desprendidos de     qualquer preocupação de crítica social – mesmo nos chamados “cursos     críticos”. Em suma, a universidade tende a se desincumbir de     qualquer função crítica. Tragtenberg, com ironia, argumenta que quem     deseje levar a sério o lema kantiano “Ouse conhecer”, terá que     realizá-lo fora do campus: “Se os estudantes procuram     conhecer os espíritos audazes de nossa época, é fora da universidade     que irão encontrá-los” (Id., p. 13).
        Estamos, assim, diante de uma     universidade que produz intelectuais sem compromisso ético e social;     intelectuais desresponsabilizados diante da realidade social que os     cerca, cuja vinculação com o mundo real se dá pelos interesses     econômicos e políticos individuais e corporativos. São especialistas     voltados para os seus respectivos “feudos”, à cata de financiamentos     e recursos materiais que lhes proporcionem status, conforto e     as condições para uma boa vida. Não importam as fontes dos recursos     e nem as finalidades sociais do conhecimento produzido, mas sim     conseguí-los. Muitas vezes, tais práticas são encobertas pela     retórica do “público”. “Em nome do “serviço à comunidade”, a     intelectualidade se tornou cúmplice do genocídio, espionagem, engano     e todo tipo de corrupção dominante, quando domina a “razão de     Estado” em detrimento do povo”, enfatizou Tragtenberg. (Id.,     p.14-15).
        Na disputa dos interesses individuais e     corporativos, camuflados sob o discurso da “universidade pública”,     “interesse público”, “bem-comum”, etc., os fins justificam os meios.     Prevalece “a política de “panelas acadêmicas” de corredor     universitário e a publicação a qualquer preço de um texto qualquer”,     os quais “se constituem no metro para medir o sucesso     universitário”. Neste universo, “a maioria dos congressos acadêmicos     serve de “mercado humano”, onde entram em contato pessoas e cargos     acadêmicos a serem preenchidos, parecidos aos encontros entre     gerentes de hotel, em que se trocam informações sobre inovações     técnicas, revê-se velhos amigos e se estabelecem contatos     comerciais” (Id., p. 15). Eis a delinqüência acadêmica!
        Entre a resistência e a adaptação
              “Mesmo os intelectuais que são      membros vitalícios de uma sociedade podem, por assim dizer, ser      divididos em conformados e inconformados. De um lado, há      os que pertencem plenamente à sociedade tal como ela é, que      crescem nela sem um sentimento esmagador de discordância ou      incongruência e que podem ser chamados de consonantes: os que      sempre dizem “sim”; e, de outro, os dissonantes,      indivíduos em conflito com sua sociedade e, em conseqüência,     inconformados e exilados no que se refere aos privilégios, ao      poder e às honrarias. O modelo do percurso do intelectual      inconformado é mais bem exemplificado na condição de exilado,      no fato de nunca se encontrar plenamente adaptado,      sentindo-se sempre fora do mundo familiar e da ladainha dos      nativos, por assim dizer, predisposto a evitar e até mesmo a      ver com maus olhos as armadilhas da acomodação e do bem-estar      nacional. Para o intelectual, o exílio nesse sentido      metafísico é o desassossego, o movimento, a condição de estar      sempre irrequieto e causar inquietação nos outros” (SAID,      2005, p.60, grifos nosso).
    
        O modus vivendi do homo     academicus pressiona constantemente para a adaptação. Ainda que     tenha consciência crítica do campo acadêmico, são várias as     armadilhas presentes no cotidiano. Na verdade, as exigências     administrativas, burocráticas e acadêmicas impõem práticas e     discursos legitimadores que nos cercam por todos os lados. Estamos     sujeitos à lógica da concorrência: somos assalariados, submetidos a     regras e normas burocráticas que regem o nosso dia-a-dia. Se, por     exemplo, queremos passar de um nível para outro na escala da     carreira, devemos apresentar a produção no período e somar o número     de pontos exigidos. Se menosprezarmos esse procedimento, teremos     prejuízos financeiros acumulados. 
        A necessidade de “pontuar” transforma a     vida acadêmica numa espécie de contabilidade, na qual tudo o que     fazemos é quantificado. Portanto, torna-se mais importante somar     pontos do que a atividade em si. Publicar um artigo passa a ser     muito mais uma necessidade administrativa, na medida em que vale “x”     pontos para subir na carreira. A produtividade pressupõe quantidade.     Assim, não importa se tem qualidade, a tiragem e onde foi publicado,     menos ainda se será lido, mas sim se quem publicou tem os requisitos     exigidos para que seja pontuado.     Este tipo de pressão favorece práticas nada condizentes com o que se     espera de um ponto de vista ético. 
        Como salienta Waters (2006, p.12), “há     um elo causal entre a demanda corporativa pelo aumento da     produtividade e o esvaziamento, em todas as publicações, de qualquer     significação que não seja gerar números”. A linha de montagem     fordista-taylorista acadêmica produz coisas sem sentido, cujo     principal objetivo é simplesmente atender à demanda por mais e mais     “artigos”, “livros”, etc., dos organismos governamentais e privados     que injetam dinheiro nas artérias da universidade. A ânsia por se     agraciado pela oferta do “deus Estado” ou o “deus mercado”,     contribui para a cultura produtivista. Nestas circunstâncias, “o     produto é tudo que conta, não sua recepção, não o uso humano. Isso é     produção apenas com o valor de um fim em si mesmo e praticamente     mais nenhum outro” (Id., p. 42).
        A pressão é ainda maior quando se tem em     vista as exigências dos órgãos superiores em relação à     pós-graduação. Aqui, trata-se da própria sobrevivência dos programas     e do status proporcionado pelos vínculos aos mesmos. A     necessidade de publicar e de apresentar produtividade, a qualquer     preço, é ainda maior. Não é por acaso que nas ciências humanas     adota-se uma prática muito comum em outras áreas, a qual consiste em     aparecer como co-autor nos artigos dos orientandos. Muitas vezes, a     co-autoria não se justifica e uma simples nota de agradecimento no     rodapé faria justiça ao orientador, mas isso não conta ponto.     Em nome da sobrevivência do programa, e das necessidades docentes,     entra-se no reino do vale tudo. Se, por exemplo, reprovar um     pós-graduando pode prejudicar a avaliação do programa, então devemos     aprová-lo, ainda que nada o justifique. Se você deseja participar     tem que jogar o jogo, aceitar as regras e exigências. Há a opção de     não participar, mas esta acarreta ônus (como não ter qualquer     possibilidade de influência sobre as decisões e na escolha dos     candidatos).
        Em todas as áreas, a influência dos     organismos superiores é determinante. Se você quer ter a mínima     chance de ser agraciado com recursos, vencer um edital, etc., deve     se submeter. E não basta ser submisso, tem que provar que está à     altura do seu gesto, isto é, deve se enquadrar e corresponder às     exigências de produtividade. O critério é mercadológico: ganha quem     “produziu” mais, não importa a qualidade do que foi “produzido”. A     injeção de recursos público e privado, num montante talvez sem     precedentes, acirra a pressão para que os concorrentes se     “qualifiquem” para conquistá-los. Criam-se diferenciações internas,     hierarquias mantidas por recursos externos. Os agraciados terão     melhores condições para incorporar alunos a seus projetos e de     influenciá-los. Poderão manter a clientela e o fato de terem     conquistado esta posição fortalece o status de vencedores.     Não faltarão “mariposas” a rondar a luz que irradiam. 
        O crítico, se alguém ousar fazer esse     papel, corre o risco de ser tachado de invejoso e ressentido, sem     que se atente para o simples fato de que não aceitou jogar o jogo,     isto é, fazer parte da concorrência. No mercado universitário, quem     não se adapta está condenado a viver apenas do seu próprio salário e     a não ter recursos, ainda que tenha projetos merecedores. Claro, a     culpa é dele próprio. Os editais e as oportunidades são para todos e     ninguém é culpado por ele não disputar. Se não está apto para a     concorrência, problema dele. Será lembrado quando se tratar de     atividades que não têm remuneração extra. E se alguém lhe oferece     algo que envolva ganho extra e ele recusa em nome de princípios,     será, na hipótese condescendente, considerado ingênuo ou chamado     ironicamente de “franciscano” dos tempos modernos. Deve ser algum     problema psicológico que a filosofia tomista explica, ou     simplesmente bobeira.
        Cada vez mais as relações na     universidade são intermediadas pelas leis do mercado. Os projetos     para os pobres, movimentos sociais, etc., tornam-se formas de ganhar     dinheiro. Os governos, estadual e federal, injetam recursos que     geram resultados duvidosos e paliativos para os que, em tese, são os     destinatários. É preciso conhecer o “caminho das pedras”, saber onde     estão e disputar as verbas (é preciso até mesmo reuniões que     orientem, em nome da “competência” e “excelência” da instituição).     “Ser solidário”, “cumprir uma função social”, “engajar-se”, virou     meio de vida (e com a aura de “militância intelectual”). 
        A estrutura universitária é irrigada com     uma fonte que também representa renda extra. Isso é feito de maneira     legal, com a aprovação e complacência dos departamentos e outros     níveis decisórios no campus. Estabelece-se o pacto, tácito ou     explícito, pelo qual “A”  não cria problemas para a aprovação do     projeto de “B” e vice-versa. E não importa como são articulados e     manipulados os procedimentos para sua aprovação. Estamos no reino do     vale tudo!
        A universidade pública é assediada     permanentemente por práticas e ideologia mercantis. Tudo se torna     mercadoria. A docência por vocação, o amor ao conhecimento e o     desprendimento dão lugar ao interesse egoísta enquanto fator     direcionador da práxis acadêmica.     Predomina a “caça ao tesouro” e deve-se afastar tudo o que atrapalha     sua conquista. Os fins que deveriam pautar a ação     política-pedagógica e crítica da universidade tornam-se meios para     atingir os objetivos particulares e/ou setoriais. O discurso da     “universidade pública” torna-se estratégia para efetivá-los. A     universidade aparece, então, como um grande bolo em constante disputa     entre os grupos que se organizam para abocanhar os     melhores pedaços. Quem pode mais, come mais! Dessa forma, os cargos     e controle de espaços são fundamentais, em especial aqueles que, por     sua natureza, controlam outros cargos a serem preenchidos pelos     amigos e pessoas de confiança. 
        Até mesmo a criação de departamentos,     cuja necessidade é duvidosa, se insere nessa lógica. Cada     departamento criado gera mais cargos e uma estrutura que consome     recursos sociais. Se não houvesse os recursos injetados nesta     estrutura, provavelmente nada funcionaria. Quem quer ser chefe,     coordenador, diretor, pró-reitor, reitor, etc., sem ganhar nada mais     do que o seu salário como servidor? Afinal, desempenham funções     importantes e são eleitos para tal. O problema é que quem paga a     conta não são eles nem seus eleitores, mas a sociedade. Os     defensores da “universidade pública” precisam ser remunerados para     defendê-la. Não se trata de culpabilizar, é apenas a lógica do     sistema. O óleo que lubrifica suas engrenagens é a moeda, e também o    status e as facilidades que se tem ao se ocupar determinadas     funções. Você tem a opção de participar ou não, com o bônus ou o     ônus inerente à sua decisão. 
        Na universidade pública cobram-se taxas     explícitas e implícitas. Artifícios da norma legal são utilizados     para manter cursos de pós-graduação. Tudo dentro da mais perfeita     ordem! E quem será insano a ponto de questionar a legalidade de     práticas presentes em setores hierarquicamente poderosos na     estrutura universitária? Quem terá a ousadia de afirmar que o lícito     não é necessariamente ético? No “cemitério dos vivos” o     questionamento dá lugar à vista grossa e à acomodação de interesses.     E, afinal, na luta política é preciso manter as portas abertas para     possíveis alianças à época das eleições internas. 
        Neste ambiente, a crítica e a     resistência são formas de adaptação. Os “heróis da resistência”     podem até manter o discurso crítico e radical, mas terminam por se     acomodarem e se conformarem. Os sinceros vivem entre a angústia da     observância dos princípios éticos e a negação destes, impostas pelas     necessidades práticas e imediatas. Como o Dr.     Johannes Georg Faust, personagem da obra de Goethe, devem obedecer     ao pacto feito com o demoniáco Mefistófeles. 
        Ainda sobre o Lattes         
        Talvez o Lattes seja a melhor expressão     do mercado acadêmico em que se tornou a universidade pública. O     Lattes tornou-se uma espécie de instituição avalizadora do status     acadêmico e foi praticamente sacralizado enquanto referência para     decisões que podem afetar a vida docente e discente. Se você não tem     Lattes, simplesmente não existe. E não adianta apenas tê-lo, é     preciso atualizá-lo. O que está no Lattes é tomado como verdadeiro,     e ponto! Não consta do Lattes, não existe!     Eis como nos forçam à adaptação. 
        Mas é possível resistir. Há imperativos     que não temos como fugir, mas também não precisamos vender a alma     àquele cujo nome não deve ser pronunciado. Em outras palavras, nos     limites estabelecidos ainda somos senhores das nossas ações.     Publicar a qualquer preço, render-se ao “produtivismo” e utilizar-se     do vale tudo para “enriquecer o Lattes”, pode até gerar resultados     que impressionem e nos deixem bem “qualificados” para disputar     editais e outras coisas, mas certamente não é ético. A verdade é que     as exigências éticas que fazemos aos outros (por exemplo, aos     políticos) nem sempre são lembradas quando se trata dos nossos     interesses particulares (ainda que travestidos de “interesse     público”). Um dos maiores desafios que temos enquanto ser (es)     humano (s) é conseguir manter a coerência entre o discurso e a     prática. Nenhum de nós está livre de cair em contradição.
        Os organismos financiadores e     controladores ditam as regras e determinam o que é importante. Somos     induzidos à adaptação acrítica, sem questionamento do como e de quem     são os que decidem e direcionam os rumos do campo acadêmico. As     práticas de mútuo favorecimento, clientelismo são fortalecidas pela     necessidade de publicar, de somar pontos, “enriquecer o Lattes” e     aumentar a “folha corrida”. Estabelecem-se relações de     conveniências, pactos de hipocrisias que resguardam interesses     recíprocos.
        A pressão do Lattes influencia o mercado     editorial acadêmico e até estimula plágios, comércio de trabalhos     acadêmicos, etc. Hierarquiza-se a produção entre os que têm e os que     não têm os recursos para financiar a publicação. Há até revistas que     cobram para publicar e isto é visto por muitos como normal e     natural. Se você tem money e pode pagar a edição do seu     livro, não terá maiores dificuldades em conseguir a chancela de uma     editora universitária ou mesmo privada. Há editoras cujo filão     consiste basicamente em publicar textos acadêmicos, desde que os     autores consigam financiamento. É capitalismo sem risco. Com injeção     de dinheiro público, lucra-se antes e depois. E ainda garante-se a     felicidade do autor e o seu Lattes. 
        Diante desta realidade, por que não     investir na própria publicação? Livros publicados pelo próprio autor     não é quantificado como qualquer outro? Por que submeter-se ao     mercado editorial se podemos organizar nossa própria editora e     publicarmos? Cooperativas de autores não são novidades, como também     não é nova a prática de cotizar-se para financiar a publicação. Em     determinadas circunstâncias até pode ser considerado desejável. O     problema é quando o objetivo deixa de ser divulgar textos, idéias e     trabalhos que não têm espaço no mercado editorial universitário e     nas editoras privadas e passa a ser simplesmente “fazer o Lattes”,     “somar pontos”, ser produtivo e ganhar a concorrência dos editais.
        Aos que não têm como financiar seus     trabalhos resta trilhar a via sacra e esperar até que, se tiver     sorte, surja a oportunidade. Em tese, poderá publicar numa editora     acadêmica, mas deve ter a paciência para esperar os trâmites     burocráticos, os quais podem demorar meses e anos. Há a chance de     ver seu livro publicado e deve agradecer aos céus por isso, mas será     bem mais rápido e fácil se tiver o dinheiro.
        A pressão pela publicação tem o efeito     “positivo” de estimular a criatividade e “solidariedade” entre os     indivíduos. Organizamo-nos para publicar uma obra, pois sabemos o     quanto isso é importante para o coletivo. Pode ocorrer que o     coletivo seja prejudicado devido à baixa produtividade dos docentes,     com o risco de não ter recursos necessários para os projetos, que a     pós-graduação seja inviabilizada e que os alunos não tenham a chance     de aprovar seus projetos de pesquisa. Nosso Lattes precisa ser     “enriquecido” em prol da coletividade; precisamos mostrar     produtividade. Organizemos, então, uma obra com artigos de todos –     não importa sobre o quê, nem se será lido. Melhor ainda se tivermos     verba para publicar e garantir a chancela da editora.
        Efeitos e conseqüências
              “O problema é a insistência na      produtividade, sem a menor preocupação com a recepção do      trabalho. Perdeu-se o equilíbrio entre esses dois elementos – a      produção e a recepção” (WATERS, 2006, p. 25).
    
        Os efeitos dessa “corrida maluca” pela     produtividade são nefastos e influenciam o cotidiano acadêmico desde     a graduação. Logo cedo, os graduandos aprendem a jogar o jogo e     percebem a importância de “encostar” na pessoa certa, aquela que     abrirá as portas para um possível mestrado.     Por experiência concluem que o mais importante não é necessariamente     o projeto de pesquisa ou o saber, mas sim conquistar a “proteção”     dos mais “produtivos”, os que têm o Lattes mais extenso e que ocupam     postos chaves no mundo acadêmico. Percebem que para se dar bem na     carreira acadêmica precisam aceitar certas práticas e relações nem     sempre justas e éticas. 
        O clientelismo caminha de mãos dadas com     a bajulação, a adaptação e a submissão acrítica à linha teórica e     ideológica do “protetor”. Em lugar de favorecer a autonomia do     educando, investe-se na subordinação, na formação de séquitos e de     discípulos dispostos a defender a verdade do mestre, mas incapazes     de pensar pela própria cabeça.     E nem é preciso ser bom aluno, basta apenas se dar bem com     o professor “X”, ainda que reprove ou se saia mal em outras     disciplinas. 
        Este é também um jogo de mútuas     vaidades. Os neófitos miram-se nos exemplos que têm diante de si,     aprendem a serem servis e tornam-se catedráticos na arte da     dissimulação. O servilismo tende a se aprofundar na medida em que     aumenta a concorrência para ingressar na pós-graduação e é     reproduzida nesta.
        Pressionados pela exigência de mais e     mais produtividade, os docentes reproduzem o servilismo na relação     com os órgãos superiores. Mutilam-se para atender as normas e regras     burocráticas decididas por um grupo seleto de indivíduos, os quais     agem como deuses no Olimpo, cujas decisões são imperativas e     moldam a prática cotidiana da maioria. Esta se submete. A perda do     senso crítico e submissão à ordem acadêmica talvez representem o     efeito mais infausto e preocupante.
        As diretrizes emanadas dos órgãos     superiores, e acatadas incondicionalmente no campus, favorecem o     intelectual especialista. Valoriza-se o saber burocratizado,     disciplinado, prisioneiro de fórmulas e padrões tidos como sinônimo     do caráter científico. A forma passa a ser mais importante que o     conteúdo. O discurso da transdisciplinaridade e     multidisciplinaridade, tão em moda por certo período, não suplanta     práticas fundadas na especialização. Os próprios critérios de     avaliação desses organismos pressupõem consistência na área de     pesquisa, ou seja, a constatação de que os pesquisadores se atêm aos     mesmos “objetos”, por anos, décadas... 
        Ao anuir com os critérios positivistas     da medição matemática do saber, como se este pudesse ser     verdadeiramente mensurado, numa clara rendição às áreas do     conhecimento acadêmico que priorizam a quantificação e também aos     princípios mercadológicos cada vez mais influentes no campus, acentua-se o “produtivismo”. Na medida em que se prioriza a     quantidade, compromete-se a qualidade do que é publicado. Claro, há     muitos interesses a defender e é melhor não colocá-los em risco.     Prevalece a mentalidade burocrática e conformista. É como se     dissessem implicitamente que devemos “provar que não somos mentes     independentes, que nos submetemos às regras e aos objetivos da alta     produtividade”, escreve Lindsay Waters (Id., p. 87). A mediocridade     caminha de mãos dadas com o conformismo. 
        O resultado é um ambiente acadêmico cada     vez mais estressante e deprimente, povoado por indivíduos     conformistas e apegados a interesses particulares e mesquinhos,     fechados em feudos e lançados numa corrida desenfreada para     conquistar posições, status e recursos materiais. O sonho     dourado do sucesso, do reconhecimento dos pares, passa pela     aceitação sem resistência ou questionamento da ideologia     produtivista. A “Casa de Salomão” imaginada por Francis Bacon tem     mais o aspecto de um imenso “cemitério dos vivos”.
        Concluindo...
        Passaram-se cerca de três décadas. Será     que a situação denunciada por Maurício Tragtenberg foi superada?     Claro, as circunstâncias são outras, a sociedade e a universidade     passaram por mutações. Parece-me, entretanto, que as observações de     Maurício Tragtenberg permanecem atuais. Mesmo no nível puramente     empírico é possível notar situações e atitudes que demonstram a     permanência e intensificação dos aspectos que ele identificou como     próprios da delinqüência acadêmica. Persistem práticas e atitudes     delinqüentes e com o agravante de que parecem naturalizadas e aceitas     como necessárias e “normais”. Perde-se a capacidade de     escandalizar-se e encontram-se argumentos racionais para     legitimá-las. 
        Não é fácil resistir à pressão pela     adaptação. Vivemos a contradição da obediência à autoridade racional     burocrática, às exigências inerentes à sobrevivência pessoal e     acadêmica e, simultaneamente, a consciência da necessidade de negar     e criticar o campo do qual somos partes. Eis o paradoxo do     intelectual que, apesar de tudo, insiste em não se submeter. Nesses     momentos, devemos nos mirar no exemplo de intelectuais como     Tragtenberg, Bourdieu e Edward W. Said, entre outros, que mostraram     a possibilidade de sobrevivermos sem fazer o sacrifício do espírito     crítico e da liberdade, ainda que saibamos dos limites e     dificuldades. Como escreveu Said (1993, p. 90):
              “Em outras palavras, o intelectual      propriamente dito não é um funcionário, nem um empregado      inteiramente comprometido com os objetivos políticos de um      governo, de uma grande corporação ou mesmo de uma associação de      profissionais que compartilhem uma opinião comum. Em tais      situações as tentações de bloquear o sentido moral, de pensar      apenas do ponto de vista da especialização ou de reduzir o      ceticismo em prol do conformismo são muito grandes para serem      confiáveis. Muitos intelectuais sucumbem por completo a essas      tentações e, até certo ponto, todos nós. Ninguém é totalmente      auto-suficiente, nem mesmo o mais livre dos espíritos”      (grifos nosso).
    
        A exigência da adaptação é forte. Os     inadaptados são vistos como um tipo em extinção. No reino do vale     tudo na competição por prestígio e vantagens materiais e     financeiras, a recusa só pode ser caracterizada como ingenuidade     própria dos tolos. Não advogo o auto-isolamento ou uma atitude do     tipo “ludista”, mas sim a necessidade de manter a lucidez e usar os     meios que a própria universidade oferece, e o nosso trabalho     intelectual, para combater o poder e as ilusões dos conformistas. O     sentido da vida, e do viver, é mais profundo do que as fúteis     vaidades e sonhos consumistas que acalentamos. É preciso tirar o véu     que encobre a realidade e resistir aos devaneios de uma existência     vazia de significados. É possível ser e agir diferente; é necessário     resistir aos “inimigos da esperança”!
         
        Referências
        BOURDIEU, P. (1974) A economia das     trocas simbólicas. São Paulo: Editora Perspectiva.
        __________. (2000) O Poder     Simbólico. Rio de Janeiro, Bertrand Brasil.
        __________. (2004) Os usos sociais     da ciência: por uma sociologia clínica do campo científico. São     Paulo: Editora UNESP.
                SAID, E. W. (2005) Representação do     Intelectual: as Conferências Reiht de 1993. São Paulo: Companhia     das Letras.
        TRAGTENBERG, M. Sobre Educação,     Política e Sindicalismo. São Paulo: Editores Associados; Cortez,     1990, 2ª ed. (Coleção Teoria e Práticas Sociais, vol 1).
        VICENTE, F. G. D. “Latindo atrás do     Lattes”. REA, nº 73, junho de 2007, disponível em        http://www.espacoacademico.com.br/073/73vieira.htm
        WATERS, L. (2006) Inimigos da     esperança: publicar, perecer e o eclipse da erudição. São Paulo:     Editora da Unesp.
        WEBER, M. (1993) Ciência e     Política: duas vocações. São Paulo: Editora Cultrix.
    
                              Docente na       Universidade Estadual de Maringá, Departamento de Ciências       Sociais.
            
                              Este aspecto me chamou a atenção desde a época em que era       graduando, observando meus professores e professoras e       outros seres que habitam o campus. A atuação na       docência universitária confirmou minhas impressões. Não que       a vaidade seja inerente e restrita ao ambiente acadêmico! A       vaidade é própria do humano e todos somos, em maior ou menor       intensidade, vaidosos. Porém, como afirma Max Weber (1993,       p.107): “Nos meios científicos e universitários, ela chega a       constituir-se numa espécie de moléstia profissional”. A       vaidade pode até mesmo desempenhar um papel positivo, mas, a       partir de determinados parâmetros, como no mito de narciso,       torna-se patologia e envenena as relações humanas. Ver:            Óleo de Lorenzo e Patch Adams: a arrogância titulada,       REA, nº 28, setembro de 2003;            Aqui jaz fulano de tal... e a sua superioridade!, REA,       nº 30, novembro de 2003;            Sobre a vaidade no campo acadêmico, REA, nº 45,       fevereiro de 2005;            Educação, opção política e preconceito acadêmico, REA,       nº 66, novembro de 2006.
                               É o que Pierre Bourdieu (1974, p. 109) chamou de lei da       dialética da distinção. Devido à maneira como funciona o       campo intelectual, os intelectuais, necessariamente,       perseguem a distinção. Para ele, isto não constitui       um defeito pessoal, um “vício da natureza” humana egoísta.       Bourdieu observa que a mesma lei que impele o intelectual a       perseguir a distinção “impõe também os limites no       interior dos quais tal busca pode exercer legitimamente sua       ação”.
            
           
           
           
           
           
           
           
           
           
                              É preciso considerar o contexto em que ocorre este       intercâmbio. A racionalidade instrumental que impulsiona       docentes e discentes faz parecer que a troca é entre iguais       e que é justa. Ver “A corrida pelo Lattes”, já citado.
            
           
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