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CALENDÁRIO NEGRO – DEZEMBRO

1 – O flautista Patápio Silva é contemplado com a medalha de ouro do Instituto Nacional de Música, prêmio até então nunca conferido a um negro (1901)
1 – Nasce no Rio de Janeiro (RJ) Otto Henrique Trepte, o compositor Casquinha, integrante da Velha Guarda da Portela, parceiro de Candeia, autor de vários sambas de sucesso como: "Recado", "Sinal Aberto", "Preta Aloirada" (1922)
1 – O líder da Revolta da Chibata João Cândido após julgamento é absolvido (1912)
1 – Todas as unidades do Exército dos Estados Unidos (inclusive a Força Aérea, nesta época, uma parte do exército) passaram a admitir homens negros (1941)
1 – Rosa Parks recusa-se a ceder o seu lugar num ônibus de Montgomery (EUA) desafiando a lei local de segregação nos transportes públicos. Este fato deu início ao "milagre de Montgomery” (1955)
2 – Dia Nacional do Samba
2 – Nasce em Magé (RJ) Francisco de Paula Brito. Compôs as primeiras notícias deste que é hoje o mais antigo jornal do Brasil, o Jornal do Comércio (1809)
2 – Nasce em Salvador (BA) Deoscóredes Maximiliano dos Santos, o sumo sacerdote do Axé Opô Afonjá, escritor e artista plástico, Mestre Didi (1917)
2 – Inicia-se na cidade de Santos (SP), o I Simpósio do Samba (1966)
2 – Fundação na cidade de Salvador (BA), do Ilê Asipa, terreiro do culto aos egugun, chefiado pelo sumo sacerdote do culto Alapini Ipekunoye Descoredes Maximiliano dos Santos, o Mestre Didi (1980)
2 – Começa em Valença (RJ), o 1º Encontro Nacional de Mulheres Negras (1988)
3 – Frederick Douglas, escritor, eloquente orador em favor da causa abolicionista, e Martin R. Delaney fundam nos Estados Unidos o North Star, jornal antiescravagista (1847)
3 – Nasce em Valença(BA), Maria Balbina dos Santos, a líder religiosa da Comunidade Terreiro Caxuté, de matriz Banto-indígena, localizada no território do Baixo Sul da Bahia, Mãe Bárbara ou Mam’eto kwa Nkisi Kafurengá (1973)
3 – Numa tarde de chuva, em um bairro do subúrbio do Rio de Janeiro, é fundado o Coletivo de Escritores Negros do Rio de Janeiro (1988)
4 – Dia consagrado ao Orixá Oyá (Iansã)
4 – 22 marinheiros, revoltosos contra a chibata, castigo físico dado aos marinheiros, são presos pelo Governo brasileiro, acusados de conspiração (1910)
4 – Realizado em Valença (RJ), o I Encontro Nacional de Mulheres Negras, que serviu como um espaço de articulação política para as mais de 400(quatrocentas) mulheres negras eleitas como delegadas nos dezoito Estados brasileiros (1988)
5 – Depois de resistir de 1630 até 1695, é completamente destruído o Quilombo dos Palmares (1697)
5 – Nasce em Pinhal (SP) Otávio Henrique de Oliveira, o cantor Blecaute (1919)
5 – Nasce no Rio de Janeiro (RJ) o compositor Rubem dos Santos, o radialista Rubem Confete (1937)
5 – O cantor jamaicano Bob Marley participa do show "Smile Jamaica Concert", no National Hero's Park, dois dias depois de sofrer um atentado provavelmente de origem política (1976)
6 – Edital proibia o porte de arma aos negros, escravos ou não e impunha-se a pena de 300 açoites aos cativos que infringissem a lei. (1816)
6 – Nasce no Rio de Janeiro (RJ) Jorge de Oliveira Veiga, o cantor Jorge Veiga (1910)
6 – Nasce no Rio de Janeiro (RJ) Emílio Vitalino Santiago, o cantor Emílio Santiago (1946)
6 – Realização em Goiás (GO) do Encontro Nacional de Mulheres Negras, com o tema “30 Anos contra o Racismo e a Violência e pelo Bem Viver – Mulheres Negras Movem o Brasil” (2018)
7 – Nasce Sir Milton Margai, Primeiro Ministro de Serra Leoa (1895)
7 – Nasce no Rio de Janeiro (RJ) Luís Carlos Amaral Gomes, o poeta Éle Semog (1952)
7 – Clementina de Jesus, a "Mãe Quelé", aos 63 anos pisa o palco pela primeira vez como cantora profissional, no Teatro Jovem, primeiro show da série de espetáculos "Menestrel" sob a direção de Hermínio Bello de Carvalho (1964)
8 – Nasce em Salvador(BA) o poeta e ativista do Movimento Negro Jônatas Conceição (1952)
8 – Fundação na Província do Ceará, da Sociedade Cearense Libertadora (1880)
8 – Nasce no Harlem, Nova Iorque (EUA), Sammy Davis Jr., um dos artistas mais versáteis de toda a história da música e do "show business" americano (1925)
8 – Nasce no Rio de Janeiro (RJ) Alaíde Costa Silveira, a cantora Alaíde Costa (1933)
8 – Dia consagrado ao Orixá Oxum
9 – Nasce em São Paulo (SP) Erlon Vieira Chaves, o compositor e arranjador Erlon Chaves (1933)
9 – Nasce em Monte Santo, Minas Gerais, o ator e diretor Milton Gonçalves (1933)
9 – Nasce em Salvador/BA, a atriz Zeni Pereira, famosa por interpretar a cozinheira Januária na novela Escrava Isaura (1924)
10 – O líder sul-africano Nelson Mandela recebe em Oslo, Noruega o Prêmio Nobel da Paz (1993)
10 – O Presidente da África do Sul, Nelson Mandela, assina a nova Constituição do país, instituindo legalmente a igualdade racial (1996)
10 – Dia Internacional dos Direitos Humanos, instituído pela ONU em 1948
10 – Fundação em Angola, do Movimento Popular de Libertação de Angola - MPLA (1975)
10 – Criação do Programa SOS Racismo, do IPCN (RJ), Direitos Humanos e Civis (1987)
11 – Nasce em Gary, condado de Lake, Indiana (EUA), Jermaine LaJaune Jackson, o cantor, baixista, compositor, dançarino e produtor musical Jermaine Jackson (1954)
11 – Festa Nacional de Alto Volta (1958)
11 – Surge no Rio de Janeiro, o Jornal Redenção (1950)
12 – O Presidente Geral do CNA, Cheif Albert Luthuli, recebe o Prêmio Nobel da Paz, o primeiro a ser concedido a um líder africano (1960)
12 – Nasce em Leopoldina (MG) Osvaldo Alves Pereira, o cantor e compositor Noca da Portela, autor de inúmeros sucessos como: "Portela na Avenida", "é preciso muito amor", "Vendaval da vida", "Virada", "Mil Réis" (1932)
12 – Nasce no Rio de Janeiro (RJ) Wilson Moreira Serra, o compositor Wilson Moreira, autor de sucessos como "Gostoso Veneno", "Okolofé", "Candongueiro", "Coisa da Antiga" (1936)
12 – Independência do Quênia (1963)
13 – Dia consagrado a Oxum Apará ou Opará, a mais jovem entre todas as Oxuns, de gênio guerreiro
13 – Nasce em Exu (PE) Luiz Gonzaga do Nascimento, o cantor, compositor e acordeonista Luiz Gonzaga (1912)
14 – Rui Barbosa assina despacho ordenando a queima de registros do tráfico e da escravidão no Brasil (1890)
15 – Machado de Assis é proclamado o primeiro presidente da Academia Brasileira de Letras (1896)
16 – Nasce na cidade do Rio Grande (RS) o político Elbert Madruga (1921)
16 – O Congresso Nacional Africano (CNA), já na clandestinidade, cria o seu braço armado (1961)
17 – Nasce no Rio de Janeiro (RJ) Augusto Temístocles da Silva Costa, o humorista Tião Macalé (1926)
18 – Nasce em King William's Town, próximo a Cidade do Cabo, África do Sul, o líder africano Steve Biko (1946)
18 – A aviação sul-africana bombardeia uma aldeia angolana causando a morte dezenas de habitantes (1983)
19 – Nasce nos Estados Unidos, Carter G. Woodson, considerado o "Pai da História Negra" americana (1875)
19 – Nasce no bairro de São Cristóvão (RJ) Manuel da Conceição Chantre, o compositor e violonista Mão de Vaca (1930)
20 – Abolição da escravatura na Ilha Reunião (1848)
20 – Nasce em Salvador (BA) Carlos Alberto de Oliveira, advogado, jornalista, político e ativista do Movimento Negro, autor da Lei 7.716/1989 ou Lei Caó, que define os crimes em razão de preconceito e discriminação de raça ou cor (1941)
21 – Nasce em Los Angeles (EUA) Delorez Florence Griffith, a atleta Florence Griffith Joyner - Flo-Jo, recordista mundial dos 100m (1959)
22 – Criado o Museu da Abolição, através da Lei Federal nº 3.357, com sede na cidade do Recife, em homenagem a João Alfredo e Joaquim Nabuco (1957)
23 – Nasce em Louisiana (EUA) Sarah Breedlove, a empresária de cosméticos, filantropa, política e ativista social Madam C. J. Walker, primeira mulher a construir sua própria fortuna nos Estados Unidos ao criar e vender produtos de beleza para mulheres negras. Com sua Madam C.J. Walker Manufacturing Company, ela fez doações em dinheiro a várias organizações e projetos voltados à comunidade negra (1867)
23 – Criação no Rio de Janeiro, do Grupo Vissungo (1974)
23 - O senador americano Jesse Jackson recebe o título de Cidadão do Estado do Rio de Janeiro e o diploma de Cidadão Benemérito do Rio de Janeiro durante visita ao Brasil, por meio do Projeto de Resolução nº 554 de 1996, de autoria do Deputado Graça e Paz (1996)
24 – João Cândido, líder da Revolta da Chibata e mais 17 revoltosos são colocados na "solitária" do quartel-general da Marinha (1910)
25 – Parte do Rio de Janeiro, o navio Satélite, levando 105 ex-marinheiros participantes da Revolta da Chibata, 44 mulheres, 298 marginais e 50 praças do Exército, enviados sem julgamento para trabalhos forçados no Amazonas. 9 marujos foram fuzilados em alto-mar e os restantes deixados nas margens do Rio Amazonas (1910)
25 – Nasce no Município de Duque de Caxias, (RJ) Jair Ventura Filho, o jogador de futebol Jairzinho, "O Furacão da Copa de 1970" (1944)
26 – Primeiro dia do Kwanza, período religioso afro-americano
27 – Nasce em Natal (RN), o jogador Richarlyson (1982)
28 – O estado de São Paulo institui o Dia da Mãe Preta (1968)
28 – Nasce na Pensilvânia (EUA), Earl Kenneth Hines, o pianista Earl “Fatha” Hines, um dos maiores pianistas da história do jazz (1903)
29 – Nasce no Rio de Janeiro (RJ) Édio Laurindo da Silva, o sambista Delegado, famoso mestre-sala da Estação Primeira de Mangueira (1922)
29 – Nasce em Diourbel, Senegal, Cheikh Anta Diop, historiador, antropólogo, físico e político (1923)
30 – Nasce no Rio de Janeiro (RJ) Maria de Lourdes Mendes, a jongueira Tia Maria da Grota (1920)
30 – Nasce em Cypress, Califórnia (EUA), Eldrick Tont Woods, o jogador de golfe Tiger Woods, considerado um dos maiores golfistas de todos os tempos (1975)
31 – Nasce no Morro da Serrinha, Madureira (RJ), Darcy Monteiro, músico profissional, compositor, percussionista, ritmista, jongueiro, criador do Grupo Bassam, nome artístico do Jongo da Serrinha (1932)
31 – Nasce na Virgínia (EUA), Gabrielle Christina Victoria Douglas, ou Gabby Douglas, a primeira pessoa afro-americana e a primeira de ascendência africana de qualquer nacionalidade na história olímpica a se tornar campeã individual e a primeira ginasta americana a ganhar medalha de ouro, tanto individualmente como em equipe, numa mesma Olimpíada, em 2012 (1995)
31 – Fundada pelo liberto Polydorio Antonio de Oliveira, na Rua General Lima e Silva nº 316, na cidade de Porto Alegre, a Sociedade Beneficente Floresta Aurora (1872)
31 – Dia dos Umbandistas



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sexta-feira, 16 de janeiro de 2009

Somos todos delinqüentes acadêmicos?(Antonio Ozaí da Silva)

Será que eu falei
O que ninguém ouvia?
Será que eu escutei
O que ninguém dizia?
Eu não vou me adaptar
Me adaptar...

(Titãs)

“Como foi que chegamos a departamentos cheios de acadêmicos infantilizados?”

“A sabedoria de hoje diz: não formule grandes questões; não pergunte por que as coisas são como são”

“Gente demais acredita hoje que o trabalho intelectual diz respeito apenas a postos e promoções”

“Enquanto aceitarmos esse sistema, permaneceremos dentro da baleia”[1]

(Lindsay Waters, 2006, p.36, 53, 81 e 83

À guisa de alerta!

Ao contrário do que poderíamos imaginar, o homo academicus é muito suscetível à crítica. No ambiente universitário ardem as chamas das doutas vaidades e a racionalidade dita científica mascara sentimentos mesquinhos. Entre nós, os intelectuais, o narcisismo tende a ser acentuado e talvez isto contribua para compreendermos os melindres observáveis em nosso meio. Vaidade das vaidades![2]

A necessidade de distinção[3] não algo restrito ao egocentrismo individual, mas uma necessidade inerente ao campo acadêmico. [4] Não se trata, portanto, de identificar e condenar os pecadores, mas de analisar os pecados – e todos estamos sujeitos a cometê-los. Estas reflexões, bem claro, não se dirigem nem é uma peça acusatória a qualquer indivíduo em especial. Se a carapuça servir e encontre quem a vista, a culpa não é minha. O objeto, contudo, é o campo acadêmico; o objetivo é analisá-lo numa perspectiva crítica, com a esperança de contribuir para a auto-análise coletiva.

Maurício Tragtenberg

Em 1978, no I Seminário de Educação Brasileira, realizado em Campinas (SP), Maurício Tragtenberg falou sobre a “delinqüência acadêmica”. O jornalista Laerte Ziggiati registrou:

“Porém, no meio de muita discussão teórica, houve um momento em que grande parte do público presente explodiu em aplausos. Foi quando encerrou sua comunicação o professor Maurício Tragtenberg, da Faculdade de Educação da Unicamp e da Escola de Administração de Empresas de São Paulo (FGV). Maurício Tragtenberg, com sua longa experiência, rasgou o verbo e com grande coragem deu um retrato fiel e ao mesmo tempo sombrio da situação crítica da Universidade brasileira.” [5]

Tragtenberg, então, chamava a atenção de que a universidade não é neutra, mas sim uma instituição que expressa interesses e as contradições inerentes à sociedade. A universidade, porém, tende a obscurecer esse caráter pela afirmação da ideologia de um saber aparentemente neutro, que seria “objetivo” e “científico” e estaria acima dos antagonismos sociais. [6] Ele enfatiza o caráter classista da universidade. O saber legitimado no campus não é um saber ingênuo, desprovido da influência das relações de poder. Sua estrutura burocrática e autoritária fortalece a ordem e o poder, influencia o corpo docente e discente e é referência para a práxis no campus. Tanto professores quanto alunos reproduzem-na cotidianamente, dentro e fora da sala de aula.

Na universidade predomina o especialista. Ela produz uma espécie de taylorismo intelectual, com a divisão do conhecimento em disciplinas estanques e a instrumentalização do saber aplicado a fins empresariais e militares. Dessa forma, a universidade submeteu-se à racionalidade capitalista, transformando-se numa instituição tecnocrática. Sua função é formar os que contribuirão para a manutenção da ordem, fundada no despotismo nos locais de trabalho e no controle político e social abrangendo toda a sociedade. Seus institutos de pesquisa,

“cria[m] aqueles que deformam os dados econômicos em detrimento dos assalariados; nas suas escolas de direito, forma[m] os aplicadores de legislação de exceção; nas escolas de medicina, aqueles que irão convertê-la numa medicina do capital ou utilizá-la repressivamente contra os deserdados do sistema. Em suma, trata-se de um “complô de bela almas” recheadas de títulos acadêmicos, de doutorismo substituindo o bacharelismo, de uma nova pedantocracia, da produção de um saber a serviço do poder, seja ele de que espécie for” (TRAGTENBERG, 1990, p.11).

A universidade reproduz os valores predominantes na sociedade pela seleção e transmissão de conhecimentos legitimados institucionalmente; sua estrutura e pedagogia burocrática contribuem para a formação de indivíduos submissos, servis e desprendidos de qualquer preocupação de crítica social – mesmo nos chamados “cursos críticos”. Em suma, a universidade tende a se desincumbir de qualquer função crítica. Tragtenberg, com ironia, argumenta que quem deseje levar a sério o lema kantiano “Ouse conhecer”, terá que realizá-lo fora do campus: “Se os estudantes procuram conhecer os espíritos audazes de nossa época, é fora da universidade que irão encontrá-los” (Id., p. 13).

Estamos, assim, diante de uma universidade que produz intelectuais sem compromisso ético e social; intelectuais desresponsabilizados diante da realidade social que os cerca, cuja vinculação com o mundo real se dá pelos interesses econômicos e políticos individuais e corporativos. São especialistas voltados para os seus respectivos “feudos”, à cata de financiamentos e recursos materiais que lhes proporcionem status, conforto e as condições para uma boa vida. Não importam as fontes dos recursos e nem as finalidades sociais do conhecimento produzido, mas sim conseguí-los. Muitas vezes, tais práticas são encobertas pela retórica do “público”. “Em nome do “serviço à comunidade”, a intelectualidade se tornou cúmplice do genocídio, espionagem, engano e todo tipo de corrupção dominante, quando domina a “razão de Estado” em detrimento do povo”, enfatizou Tragtenberg. (Id., p.14-15).

Na disputa dos interesses individuais e corporativos, camuflados sob o discurso da “universidade pública”, “interesse público”, “bem-comum”, etc., os fins justificam os meios. Prevalece “a política de “panelas acadêmicas” de corredor universitário e a publicação a qualquer preço de um texto qualquer”, os quais “se constituem no metro para medir o sucesso universitário”. Neste universo, “a maioria dos congressos acadêmicos serve de “mercado humano”, onde entram em contato pessoas e cargos acadêmicos a serem preenchidos, parecidos aos encontros entre gerentes de hotel, em que se trocam informações sobre inovações técnicas, revê-se velhos amigos e se estabelecem contatos comerciais” (Id., p. 15). Eis a delinqüência acadêmica!

Entre a resistência e a adaptação

“Mesmo os intelectuais que são membros vitalícios de uma sociedade podem, por assim dizer, ser divididos em conformados e inconformados. De um lado, há os que pertencem plenamente à sociedade tal como ela é, que crescem nela sem um sentimento esmagador de discordância ou incongruência e que podem ser chamados de consonantes: os que sempre dizem “sim”; e, de outro, os dissonantes, indivíduos em conflito com sua sociedade e, em conseqüência, inconformados e exilados no que se refere aos privilégios, ao poder e às honrarias. O modelo do percurso do intelectual inconformado é mais bem exemplificado na condição de exilado, no fato de nunca se encontrar plenamente adaptado, sentindo-se sempre fora do mundo familiar e da ladainha dos nativos, por assim dizer, predisposto a evitar e até mesmo a ver com maus olhos as armadilhas da acomodação e do bem-estar nacional. Para o intelectual, o exílio nesse sentido metafísico é o desassossego, o movimento, a condição de estar sempre irrequieto e causar inquietação nos outros” (SAID, 2005, p.60, grifos nosso).

O modus vivendi do homo academicus pressiona constantemente para a adaptação. Ainda que tenha consciência crítica do campo acadêmico, são várias as armadilhas presentes no cotidiano. Na verdade, as exigências administrativas, burocráticas e acadêmicas impõem práticas e discursos legitimadores que nos cercam por todos os lados. Estamos sujeitos à lógica da concorrência: somos assalariados, submetidos a regras e normas burocráticas que regem o nosso dia-a-dia. Se, por exemplo, queremos passar de um nível para outro na escala da carreira, devemos apresentar a produção no período e somar o número de pontos exigidos. Se menosprezarmos esse procedimento, teremos prejuízos financeiros acumulados.

A necessidade de “pontuar” transforma a vida acadêmica numa espécie de contabilidade, na qual tudo o que fazemos é quantificado. Portanto, torna-se mais importante somar pontos do que a atividade em si. Publicar um artigo passa a ser muito mais uma necessidade administrativa, na medida em que vale “x” pontos para subir na carreira. A produtividade pressupõe quantidade. Assim, não importa se tem qualidade, a tiragem e onde foi publicado, menos ainda se será lido, mas sim se quem publicou tem os requisitos exigidos para que seja pontuado.[7] Este tipo de pressão favorece práticas nada condizentes com o que se espera de um ponto de vista ético.

Como salienta Waters (2006, p.12), “há um elo causal entre a demanda corporativa pelo aumento da produtividade e o esvaziamento, em todas as publicações, de qualquer significação que não seja gerar números”. A linha de montagem fordista-taylorista acadêmica produz coisas sem sentido, cujo principal objetivo é simplesmente atender à demanda por mais e mais “artigos”, “livros”, etc., dos organismos governamentais e privados que injetam dinheiro nas artérias da universidade. A ânsia por se agraciado pela oferta do “deus Estado” ou o “deus mercado”, contribui para a cultura produtivista. Nestas circunstâncias, “o produto é tudo que conta, não sua recepção, não o uso humano. Isso é produção apenas com o valor de um fim em si mesmo e praticamente mais nenhum outro” (Id., p. 42).

A pressão é ainda maior quando se tem em vista as exigências dos órgãos superiores em relação à pós-graduação. Aqui, trata-se da própria sobrevivência dos programas e do status proporcionado pelos vínculos aos mesmos. A necessidade de publicar e de apresentar produtividade, a qualquer preço, é ainda maior. Não é por acaso que nas ciências humanas adota-se uma prática muito comum em outras áreas, a qual consiste em aparecer como co-autor nos artigos dos orientandos. Muitas vezes, a co-autoria não se justifica e uma simples nota de agradecimento no rodapé faria justiça ao orientador, mas isso não conta ponto.[8] Em nome da sobrevivência do programa, e das necessidades docentes, entra-se no reino do vale tudo. Se, por exemplo, reprovar um pós-graduando pode prejudicar a avaliação do programa, então devemos aprová-lo, ainda que nada o justifique. Se você deseja participar tem que jogar o jogo, aceitar as regras e exigências. Há a opção de não participar, mas esta acarreta ônus (como não ter qualquer possibilidade de influência sobre as decisões e na escolha dos candidatos).

Em todas as áreas, a influência dos organismos superiores é determinante. Se você quer ter a mínima chance de ser agraciado com recursos, vencer um edital, etc., deve se submeter. E não basta ser submisso, tem que provar que está à altura do seu gesto, isto é, deve se enquadrar e corresponder às exigências de produtividade. O critério é mercadológico: ganha quem “produziu” mais, não importa a qualidade do que foi “produzido”. A injeção de recursos público e privado, num montante talvez sem precedentes, acirra a pressão para que os concorrentes se “qualifiquem” para conquistá-los. Criam-se diferenciações internas, hierarquias mantidas por recursos externos. Os agraciados terão melhores condições para incorporar alunos a seus projetos e de influenciá-los. Poderão manter a clientela e o fato de terem conquistado esta posição fortalece o status de vencedores. Não faltarão “mariposas” a rondar a luz que irradiam.

O crítico, se alguém ousar fazer esse papel, corre o risco de ser tachado de invejoso e ressentido, sem que se atente para o simples fato de que não aceitou jogar o jogo[9], isto é, fazer parte da concorrência. No mercado universitário, quem não se adapta está condenado a viver apenas do seu próprio salário e a não ter recursos, ainda que tenha projetos merecedores. Claro, a culpa é dele próprio. Os editais e as oportunidades são para todos e ninguém é culpado por ele não disputar. Se não está apto para a concorrência, problema dele. Será lembrado quando se tratar de atividades que não têm remuneração extra. E se alguém lhe oferece algo que envolva ganho extra e ele recusa em nome de princípios, será, na hipótese condescendente, considerado ingênuo ou chamado ironicamente de “franciscano” dos tempos modernos. Deve ser algum problema psicológico que a filosofia tomista explica, ou simplesmente bobeira.

Cada vez mais as relações na universidade são intermediadas pelas leis do mercado. Os projetos para os pobres, movimentos sociais, etc., tornam-se formas de ganhar dinheiro. Os governos, estadual e federal, injetam recursos que geram resultados duvidosos e paliativos para os que, em tese, são os destinatários. É preciso conhecer o “caminho das pedras”, saber onde estão e disputar as verbas (é preciso até mesmo reuniões que orientem, em nome da “competência” e “excelência” da instituição).[10] “Ser solidário”, “cumprir uma função social”, “engajar-se”, virou meio de vida (e com a aura de “militância intelectual”).

A estrutura universitária é irrigada com uma fonte que também representa renda extra. Isso é feito de maneira legal, com a aprovação e complacência dos departamentos e outros níveis decisórios no campus. Estabelece-se o pacto, tácito ou explícito, pelo qual “A” não cria problemas para a aprovação do projeto de “B” e vice-versa. E não importa como são articulados e manipulados os procedimentos para sua aprovação. Estamos no reino do vale tudo!

A universidade pública é assediada permanentemente por práticas e ideologia mercantis. Tudo se torna mercadoria. A docência por vocação, o amor ao conhecimento e o desprendimento dão lugar ao interesse egoísta enquanto fator direcionador da práxis acadêmica.[11] Predomina a “caça ao tesouro” e deve-se afastar tudo o que atrapalha sua conquista. Os fins que deveriam pautar a ação política-pedagógica e crítica da universidade tornam-se meios para atingir os objetivos particulares e/ou setoriais. O discurso da “universidade pública” torna-se estratégia para efetivá-los. A universidade aparece, então, como um grande bolo em constante disputa entre os grupos que se organizam para abocanhar os melhores pedaços. Quem pode mais, come mais! Dessa forma, os cargos e controle de espaços são fundamentais, em especial aqueles que, por sua natureza, controlam outros cargos a serem preenchidos pelos amigos e pessoas de confiança.

Até mesmo a criação de departamentos, cuja necessidade é duvidosa, se insere nessa lógica. Cada departamento criado gera mais cargos e uma estrutura que consome recursos sociais. Se não houvesse os recursos injetados nesta estrutura, provavelmente nada funcionaria. Quem quer ser chefe, coordenador, diretor, pró-reitor, reitor, etc., sem ganhar nada mais do que o seu salário como servidor? Afinal, desempenham funções importantes e são eleitos para tal. O problema é que quem paga a conta não são eles nem seus eleitores, mas a sociedade. Os defensores da “universidade pública” precisam ser remunerados para defendê-la. Não se trata de culpabilizar, é apenas a lógica do sistema. O óleo que lubrifica suas engrenagens é a moeda, e também o status e as facilidades que se tem ao se ocupar determinadas funções. Você tem a opção de participar ou não, com o bônus ou o ônus inerente à sua decisão.

Na universidade pública cobram-se taxas explícitas e implícitas. Artifícios da norma legal são utilizados para manter cursos de pós-graduação. Tudo dentro da mais perfeita ordem! E quem será insano a ponto de questionar a legalidade de práticas presentes em setores hierarquicamente poderosos na estrutura universitária? Quem terá a ousadia de afirmar que o lícito não é necessariamente ético? No “cemitério dos vivos” o questionamento dá lugar à vista grossa e à acomodação de interesses. E, afinal, na luta política é preciso manter as portas abertas para possíveis alianças à época das eleições internas.

Neste ambiente, a crítica e a resistência são formas de adaptação. Os “heróis da resistência” podem até manter o discurso crítico e radical, mas terminam por se acomodarem e se conformarem. Os sinceros vivem entre a angústia da observância dos princípios éticos e a negação destes, impostas pelas necessidades práticas e imediatas. Como o Dr. Johannes Georg Faust, personagem da obra de Goethe, devem obedecer ao pacto feito com o demoniáco Mefistófeles.

Ainda sobre o Lattes [12]

Talvez o Lattes seja a melhor expressão do mercado acadêmico em que se tornou a universidade pública. O Lattes tornou-se uma espécie de instituição avalizadora do status acadêmico e foi praticamente sacralizado enquanto referência para decisões que podem afetar a vida docente e discente. Se você não tem Lattes, simplesmente não existe. E não adianta apenas tê-lo, é preciso atualizá-lo. O que está no Lattes é tomado como verdadeiro, e ponto! Não consta do Lattes, não existe![13] Eis como nos forçam à adaptação.

Mas é possível resistir. Há imperativos que não temos como fugir, mas também não precisamos vender a alma àquele cujo nome não deve ser pronunciado. Em outras palavras, nos limites estabelecidos ainda somos senhores das nossas ações. Publicar a qualquer preço, render-se ao “produtivismo” e utilizar-se do vale tudo para “enriquecer o Lattes”, pode até gerar resultados que impressionem e nos deixem bem “qualificados” para disputar editais e outras coisas, mas certamente não é ético. A verdade é que as exigências éticas que fazemos aos outros (por exemplo, aos políticos) nem sempre são lembradas quando se trata dos nossos interesses particulares (ainda que travestidos de “interesse público”). Um dos maiores desafios que temos enquanto ser (es) humano (s) é conseguir manter a coerência entre o discurso e a prática. Nenhum de nós está livre de cair em contradição.

Os organismos financiadores e controladores ditam as regras e determinam o que é importante. Somos induzidos à adaptação acrítica, sem questionamento do como e de quem são os que decidem e direcionam os rumos do campo acadêmico. As práticas de mútuo favorecimento, clientelismo são fortalecidas pela necessidade de publicar, de somar pontos, “enriquecer o Lattes” e aumentar a “folha corrida”. Estabelecem-se relações de conveniências, pactos de hipocrisias que resguardam interesses recíprocos.

A pressão do Lattes influencia o mercado editorial acadêmico e até estimula plágios, comércio de trabalhos acadêmicos, etc. Hierarquiza-se a produção entre os que têm e os que não têm os recursos para financiar a publicação. Há até revistas que cobram para publicar e isto é visto por muitos como normal e natural. Se você tem money e pode pagar a edição do seu livro, não terá maiores dificuldades em conseguir a chancela de uma editora universitária ou mesmo privada. Há editoras cujo filão consiste basicamente em publicar textos acadêmicos, desde que os autores consigam financiamento. É capitalismo sem risco. Com injeção de dinheiro público, lucra-se antes e depois. E ainda garante-se a felicidade do autor e o seu Lattes.

Diante desta realidade, por que não investir na própria publicação? Livros publicados pelo próprio autor não é quantificado como qualquer outro? Por que submeter-se ao mercado editorial se podemos organizar nossa própria editora e publicarmos? Cooperativas de autores não são novidades, como também não é nova a prática de cotizar-se para financiar a publicação. Em determinadas circunstâncias até pode ser considerado desejável. O problema é quando o objetivo deixa de ser divulgar textos, idéias e trabalhos que não têm espaço no mercado editorial universitário e nas editoras privadas e passa a ser simplesmente “fazer o Lattes”, “somar pontos”, ser produtivo e ganhar a concorrência dos editais.

Aos que não têm como financiar seus trabalhos resta trilhar a via sacra e esperar até que, se tiver sorte, surja a oportunidade. Em tese, poderá publicar numa editora acadêmica, mas deve ter a paciência para esperar os trâmites burocráticos, os quais podem demorar meses e anos. Há a chance de ver seu livro publicado e deve agradecer aos céus por isso, mas será bem mais rápido e fácil se tiver o dinheiro.

A pressão pela publicação tem o efeito “positivo” de estimular a criatividade e “solidariedade” entre os indivíduos. Organizamo-nos para publicar uma obra, pois sabemos o quanto isso é importante para o coletivo. Pode ocorrer que o coletivo seja prejudicado devido à baixa produtividade dos docentes, com o risco de não ter recursos necessários para os projetos, que a pós-graduação seja inviabilizada e que os alunos não tenham a chance de aprovar seus projetos de pesquisa. Nosso Lattes precisa ser “enriquecido” em prol da coletividade; precisamos mostrar produtividade. Organizemos, então, uma obra com artigos de todos – não importa sobre o quê, nem se será lido. Melhor ainda se tivermos verba para publicar e garantir a chancela da editora.

Efeitos e conseqüências

“O problema é a insistência na produtividade, sem a menor preocupação com a recepção do trabalho. Perdeu-se o equilíbrio entre esses dois elementos – a produção e a recepção” (WATERS, 2006, p. 25).

Os efeitos dessa “corrida maluca” pela produtividade são nefastos e influenciam o cotidiano acadêmico desde a graduação. Logo cedo, os graduandos aprendem a jogar o jogo e percebem a importância de “encostar” na pessoa certa, aquela que abrirá as portas para um possível mestrado.[14] Por experiência concluem que o mais importante não é necessariamente o projeto de pesquisa ou o saber, mas sim conquistar a “proteção” dos mais “produtivos”, os que têm o Lattes mais extenso e que ocupam postos chaves no mundo acadêmico. Percebem que para se dar bem na carreira acadêmica precisam aceitar certas práticas e relações nem sempre justas e éticas.

O clientelismo caminha de mãos dadas com a bajulação, a adaptação e a submissão acrítica à linha teórica e ideológica do “protetor”. Em lugar de favorecer a autonomia do educando, investe-se na subordinação, na formação de séquitos e de discípulos dispostos a defender a verdade do mestre, mas incapazes de pensar pela própria cabeça. [15] E nem é preciso ser bom aluno, basta apenas se dar bem com o professor “X”, ainda que reprove ou se saia mal em outras disciplinas.

Este é também um jogo de mútuas vaidades. Os neófitos miram-se nos exemplos que têm diante de si, aprendem a serem servis e tornam-se catedráticos na arte da dissimulação. O servilismo tende a se aprofundar na medida em que aumenta a concorrência para ingressar na pós-graduação e é reproduzida nesta.

Pressionados pela exigência de mais e mais produtividade, os docentes reproduzem o servilismo na relação com os órgãos superiores. Mutilam-se para atender as normas e regras burocráticas decididas por um grupo seleto de indivíduos, os quais agem como deuses no Olimpo, cujas decisões são imperativas e moldam a prática cotidiana da maioria. Esta se submete. A perda do senso crítico e submissão à ordem acadêmica talvez representem o efeito mais infausto e preocupante.

As diretrizes emanadas dos órgãos superiores, e acatadas incondicionalmente no campus, favorecem o intelectual especialista. Valoriza-se o saber burocratizado, disciplinado, prisioneiro de fórmulas e padrões tidos como sinônimo do caráter científico. A forma passa a ser mais importante que o conteúdo. O discurso da transdisciplinaridade e multidisciplinaridade, tão em moda por certo período, não suplanta práticas fundadas na especialização. Os próprios critérios de avaliação desses organismos pressupõem consistência na área de pesquisa, ou seja, a constatação de que os pesquisadores se atêm aos mesmos “objetos”, por anos, décadas...

Ao anuir com os critérios positivistas da medição matemática do saber, como se este pudesse ser verdadeiramente mensurado, numa clara rendição às áreas do conhecimento acadêmico que priorizam a quantificação e também aos princípios mercadológicos cada vez mais influentes no campus, acentua-se o “produtivismo”. Na medida em que se prioriza a quantidade, compromete-se a qualidade do que é publicado. Claro, há muitos interesses a defender e é melhor não colocá-los em risco. Prevalece a mentalidade burocrática e conformista. É como se dissessem implicitamente que devemos “provar que não somos mentes independentes, que nos submetemos às regras e aos objetivos da alta produtividade”, escreve Lindsay Waters (Id., p. 87). A mediocridade caminha de mãos dadas com o conformismo.

O resultado é um ambiente acadêmico cada vez mais estressante e deprimente, povoado por indivíduos conformistas e apegados a interesses particulares e mesquinhos, fechados em feudos e lançados numa corrida desenfreada para conquistar posições, status e recursos materiais. O sonho dourado do sucesso, do reconhecimento dos pares, passa pela aceitação sem resistência ou questionamento da ideologia produtivista. A “Casa de Salomão” imaginada por Francis Bacon tem mais o aspecto de um imenso “cemitério dos vivos”.

Concluindo...

Passaram-se cerca de três décadas. Será que a situação denunciada por Maurício Tragtenberg foi superada?[16] Claro, as circunstâncias são outras, a sociedade e a universidade passaram por mutações. Parece-me, entretanto, que as observações de Maurício Tragtenberg permanecem atuais. Mesmo no nível puramente empírico é possível notar situações e atitudes que demonstram a permanência e intensificação dos aspectos que ele identificou como próprios da delinqüência acadêmica. Persistem práticas e atitudes delinqüentes e com o agravante de que parecem naturalizadas e aceitas como necessárias e “normais”. Perde-se a capacidade de escandalizar-se e encontram-se argumentos racionais para legitimá-las.

Não é fácil resistir à pressão pela adaptação. Vivemos a contradição da obediência à autoridade racional burocrática, às exigências inerentes à sobrevivência pessoal e acadêmica e, simultaneamente, a consciência da necessidade de negar e criticar o campo do qual somos partes. Eis o paradoxo do intelectual que, apesar de tudo, insiste em não se submeter. Nesses momentos, devemos nos mirar no exemplo de intelectuais como Tragtenberg, Bourdieu e Edward W. Said, entre outros, que mostraram a possibilidade de sobrevivermos sem fazer o sacrifício do espírito crítico e da liberdade, ainda que saibamos dos limites e dificuldades. Como escreveu Said (1993, p. 90):

“Em outras palavras, o intelectual propriamente dito não é um funcionário, nem um empregado inteiramente comprometido com os objetivos políticos de um governo, de uma grande corporação ou mesmo de uma associação de profissionais que compartilhem uma opinião comum. Em tais situações as tentações de bloquear o sentido moral, de pensar apenas do ponto de vista da especialização ou de reduzir o ceticismo em prol do conformismo são muito grandes para serem confiáveis. Muitos intelectuais sucumbem por completo a essas tentações e, até certo ponto, todos nós. Ninguém é totalmente auto-suficiente, nem mesmo o mais livre dos espíritos” (grifos nosso).

A exigência da adaptação é forte. Os inadaptados são vistos como um tipo em extinção. No reino do vale tudo na competição por prestígio e vantagens materiais e financeiras, a recusa só pode ser caracterizada como ingenuidade própria dos tolos. Não advogo o auto-isolamento ou uma atitude do tipo “ludista”, mas sim a necessidade de manter a lucidez e usar os meios que a própria universidade oferece, e o nosso trabalho intelectual, para combater o poder e as ilusões dos conformistas. O sentido da vida, e do viver, é mais profundo do que as fúteis vaidades e sonhos consumistas que acalentamos. É preciso tirar o véu que encobre a realidade e resistir aos devaneios de uma existência vazia de significados. É possível ser e agir diferente; é necessário resistir aos “inimigos da esperança”!

Referências

BOURDIEU, P. (1974) A economia das trocas simbólicas. São Paulo: Editora Perspectiva.

__________. (2000) O Poder Simbólico. Rio de Janeiro, Bertrand Brasil.

__________. (2004) Os usos sociais da ciência: por uma sociologia clínica do campo científico. São Paulo: Editora UNESP.

FROMM, E. (1977) TER ou SER?! Rio de Janeiro: Zahar Editores.

ORWELL, G. (2005) Dentro da baleia e outros ensaios. São Paulo: Companhia das Letras.

SAID, E. W. (2005) Representação do Intelectual: as Conferências Reiht de 1993. São Paulo: Companhia das Letras.

TRAGTENBERG, M. Sobre Educação, Política e Sindicalismo. São Paulo: Editores Associados; Cortez, 1990, 2ª ed. (Coleção Teoria e Práticas Sociais, vol 1).

VICENTE, F. G. D. “Latindo atrás do Lattes”. REA, nº 73, junho de 2007, disponível em http://www.espacoacademico.com.br/073/73vieira.htm

WATERS, L. (2006) Inimigos da esperança: publicar, perecer e o eclipse da erudição. São Paulo: Editora da Unesp.

WEBER, M. (1993) Ciência e Política: duas vocações. São Paulo: Editora Cultrix.

ZIGGIATI, L. “A delinqüência acadêmica”. Folha de S. Paulo, Folhetim, 03.12.1978. Disponível em http://www.espacoacademico.com.br/007/07trag_delinquencia.htm



* Docente na Universidade Estadual de Maringá, Departamento de Ciências Sociais.

[1] “As entranhas da baleia”, escreve George Orwell, “são apenas um útero grande o suficiente para conter um adulto. Lá ficamos, no espaço almofadado e escuro em que nos encaixamos perfeitamente, com metros de gordura entre nós e a realidade, capazes de manter uma atitude da mais completa indiferença, não importa o que aconteça” (2005, p. 135).

[2] Este aspecto me chamou a atenção desde a época em que era graduando, observando meus professores e professoras e outros seres que habitam o campus. A atuação na docência universitária confirmou minhas impressões. Não que a vaidade seja inerente e restrita ao ambiente acadêmico! A vaidade é própria do humano e todos somos, em maior ou menor intensidade, vaidosos. Porém, como afirma Max Weber (1993, p.107): “Nos meios científicos e universitários, ela chega a constituir-se numa espécie de moléstia profissional”. A vaidade pode até mesmo desempenhar um papel positivo, mas, a partir de determinados parâmetros, como no mito de narciso, torna-se patologia e envenena as relações humanas. Ver: Óleo de Lorenzo e Patch Adams: a arrogância titulada, REA, nº 28, setembro de 2003; Aqui jaz fulano de tal... e a sua superioridade!, REA, nº 30, novembro de 2003; Sobre a vaidade no campo acadêmico, REA, nº 45, fevereiro de 2005; Educação, opção política e preconceito acadêmico, REA, nº 66, novembro de 2006.

[3] É o que Pierre Bourdieu (1974, p. 109) chamou de lei da dialética da distinção. Devido à maneira como funciona o campo intelectual, os intelectuais, necessariamente, perseguem a distinção. Para ele, isto não constitui um defeito pessoal, um “vício da natureza” humana egoísta. Bourdieu observa que a mesma lei que impele o intelectual a perseguir a distinção “impõe também os limites no interior dos quais tal busca pode exercer legitimamente sua ação”.

[4] “Todo campo (...) é um campo de forças e um campo de lutas para conservar ou transformar esse campo de forças” (BOURDIEU, 2004, p. 22-23).

[5] Ver a entrevista publicada originalmente no Folhetim, Folha de S. Paulo, 03.12.1978 e, também, disponível em http://www.espacoacademico.com.br/007/07trag_delinquencia.htm

[6] Num texto apresentado no Seminário de Reitores, realizado em João Pessoa (PB), em 1978, Tragtenberg afirma: “A universidade é uma instituição dominante, além disso, ligada à dominação. Até hoje a universidade brasileira formou assessores de tiranos, é o antipovo. Criada para produzir conhecimento, ela se preocupa mais em controlá-lo” (TRAGTENBERG, 1990, p.55).

[7] Por exemplo, um livro publicado por uma editora universitária, com uma tiragem de cerca de 500 exemplares, é reconhecido pelos critérios formais burocráticos e vale muito na contagem para a ascensão na carreira universitária. Outro livro, com tiragem de 15 mil, mas que, por ignorância do autor, tenha sido publicado por uma editora sem os pré-requisitos exigidos, não conta nada e não tem valor acadêmico algum. E estamos supondo que ambos sejam comercializados e que não encalhem, isto é, que tenham leitores interessados em adquiri-los e lê-los.

[8] A Revista Urutágua tem mostrado que essa prática é, no mínimo, problemática. Adotamos como critério a não aceitação de co-autoria e os artigos são devolvidos aos autores. Estes, geralmente orientandos e orientadores, conversam e se acertam. O artigo é, então, reenviado e de acordo com os nossos critérios, isto é, com apenas um autor.

[9] Bourdieu (2000, p.85), ensina que não jogar o jogo é o mesmo que decretar a própria 'morte social'. ("A única liberdade absoluta que o jogo concede é a liberdade de sair do jogo por meio de uma renúncia heróica a qual, a não ser que crie outro jogo, não obtém a ataraxia senão à custa daquilo que é, do ponto de vista do jogo e da illusio, uma morte social", escreve ele).

[11] Prevalece o modo TER em detrimento do SER. Como esclarece Eric Fromm (1977, p. 96): “Ter refere-se a coisas, e as coisas são determinadas e definíveis. Ser refere-se à experiência humana, e a experiência humana, em princípio, não é definível”. E, mais adiante: “O modo Ser tem como requisito a independência, a liberdade e a presença de razão crítica. Sua característica fundamental é ser ativo, não no sentido de atividade externa, de estar atarefado, mas no sentido de atividade íntima, de emprego criativo dos poderes humanos” (Id., p. 97).

[12] Escrevi sobre este tema na REA, nº 46, marco de 2005. Ver “A corrida pelo Lattes”. Sugiro também a leitura do artigo “Latindo atrás do Lattes”, publicado por Francisco Giovanni David Vieira na REA, nº 73, junho de 2007, disponível em http://www.espacoacademico.com.br/073/73vieira.htm

[13] Recentemente, por exemplo, fui avaliado como possível orientador para o PIBIC e reprovado. Justificativa: Lattes desatualizado (ainda que houvesse enviado, segundo formulário interno, a relação solicitada da “produção intelectual”).

[14] É preciso considerar o contexto em que ocorre este intercâmbio. A racionalidade instrumental que impulsiona docentes e discentes faz parecer que a troca é entre iguais e que é justa. Ver “A corrida pelo Lattes”, já citado.

[15] Bem diferente das experiências que tive com os meus orientadores, os quais respeitaram e investiram na autonomia e crescimento humano e intelectual. Ver “Maurício Tragtenberg e a Pedagogia Libertária: anotações sobre a experiência do fazer a tese”, REA, nº maio de 2004, disponível em http://www.espacoacademico.com.br/036/36pol.htm

[16] Sugiro aos interessados a leitura na íntegra do texto de Maurício Tragtenberg, disponível na edição citada na bibliografia, na reedição pela Editora Unesp (2004) e também em http://www.espacoacademico.com.br/014/14mtrag1990.htm.


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