Márcio Luis Paim (1)
Janeiro de 2010
O terremoto que atingiu o Haiti no último dia 12 de Janeiro, até o momento, apresenta-se como a “grande tragédia” do início do ano de 2010. Este acontecimento está servindo para demonstrar a hipocrisia e a desfaçatez de muitos daqueles – países e indivíduos - que agora procuraram desencarregar suas consciências enviando “ajuda humanitária” para as vítimas haitianas.
Assim como muitas das atuais repúblicas latino-americanas, a escravidão não foi uma exceção da antiga São Domingos, posteriormente, denominada Haiti (2). Centro de disputas que envolveram Espanha, Inglaterra, Holanda e França (3) durante a transição do período escravista para o período republicano na América Latina, a república de São Domingos foi o principal produtor e fornecedor de açúcar para o ocidente, após a decadência da produtividade brasileira. Sob colonização francesa, São Domingos representou interesses estratégicos que envolveram, por exemplo, a disputa pela liderança no Velho continente entre a França e a Inglaterra, as duas principais potências daquele período.
Sabemos da relação intrínseca entre escravidão e violência e que o próprio sistema escravista em si, apresentou-se como uma das principais formas de violência, ou talvez, a principal violência da época moderna. Nesse sentido não podemos esquecer as violências que a Espanha, uma das potências ocidentais que primeiro ocupou o território de São Domingos, - bastião da civilidade – perpetrou, primeiro sobre as populações indígenas nativas, e posteriormente sobre as populações africanas escravizadas. Assim:
* Os espanhóis, o povo mais adiantado da Europa daqueles dias, anexaram a ilha, à qual chamaram de Hispaniola, e tomaram os seus primitivos habitantes sob sua proteção. Introduziram o cristianismo, o trabalho forçado nas minas, o assassinato, o estupro, os cães de guarda, doenças desconhecidas e a fome forjada ( pela destruição dos cultivos para matar os rebeldes de fome). Esses e outros atributos das civilizações desenvolvidas reduziram a população nativa de estimadamente meio milhão, ou talvez um milhão, para sessenta mil em quinze anos. (JAMES, 2000, p19).
No caso dos africanos escravizados:
* Os escravos recebiam o chicote com mais regularidade e certeza do que recebiam comida. Era o incentivo para o trabalho zelador da disciplina. Mas não havia engenho que o medo ou a imaginação depravada não pudesse conceber para romper o ânimo dos escravos e satisfazer a luxúria e o ressentimento de seus proprietários e guardiães: ferro nas mãos e nos pés; blocos de madeira, que os escravos tinham que arrastar por onde fossem; a máscara de folha de lata para evitar que eles comessem a cana-de-açúcar, e o colar de ferro. O açoite era interrompido para esfregar um pedaço de madeira em brasa no traseiro da vítima; sal, pimenta, cidra, carvão, aloé e cinzas quentes eram deitadas nas feridas abertas. As mutilações eram comuns: membros, orelhas e, algumas vezes, as partes pudendas para despojá-los dos prazeres aos quais eles poderiam se entregar sem custos. Seus senhores derramavam cera quente em seus braços, mãos e ombros; despejavam o caldo fervente da cana nas suas cabeças; queimavam-nos vivos: assavam-nos em fogo brando; enchiam-nos de pólvora e os explodiam com uma mecha; enterravam-nos até o pescoço e lambuzavam as suas cabeças com açúcar para que as mocas as devorassem; amarravam-nos nas proximidades de ninhos de formigas ou de vespas; faziam-no comer seus próprios excrementos, beber a própria urina e lamber a saliva dos outros escravos. Um senhor ficou conhecido por, em momentos de raiva, lançar-se sobre seus escravos e cravar os dentes em suas carnes. (JAMES, 2000, p.27).
A oposição dos africanos escravizados, sob a liderança de Toussain L’Ouverture, Dessalines e Christophe a essas formas - e outras não citadas devido a questão do espaço - sistematizadas de violência fez de São Domingos não apenas a primeira independência da América Latina, mas principalmente, o que é mais importante, a primeira independência dirigida por indivíduos de cor em nível planetário, naquele momento. Duas observações importantes devem ser feitas: a primeira delas está relacionada com o período cronológico da independência de São Domingos, 1803, segundo Ciryl Lion James.
Ao analisarmos detidamente esta data, percebemos que o ano de 1803 está separado por apenas dois anos do início do século XIX que se inicia em 1801 e se finda em 1900. Ao seguir a historiografia ocidental, as evidências apontam para o século XIX como o século da biologização das idéias, ou seja, o momento onde a biologia através da construção do conceito de raça (4), explicava – ou tentava – as diferenças entre os grupos humanos. Essa tentativa de explicar a diversidade intergrupal planetária foi responsável pela construção de uma pirâmide hierárquica onde as populações de cor e suas correlatas tinham seu espaço condicionado à base. Logo, não é difícil imaginar o impacto e os receios que a revolução do Haiti trouxe para um universo “supostamente dominado pela raça branca”.
A segunda observação, é que parte significativa da violência perpetrada no Haiti sobre os africanos escravizados e que desembocou na revolução de Toussain foi levada a cabo pelo “exemplo” de civilização do século 18, a França. Inspiradora dos princípios da “LIBERDADE, IGUALDADE E FRATERNIDADE” entre os povos do ocidente, a França sob a governança de Napoleão Bonaparte, retardou ao máximo o fim da escravidão em São Domingos, futuro Haiti, na intenção de preservar seus interesses geoestratégicos na disputa pela liderança européia com a Inglaterra. O papel e o espaço que Napoleão ocupa na historiografia ocidental devem ser repensados, principalmente se considerarmos as atrocidades cometidas em São Domingos para a preservação dos interesses franceses. Logo, Napoleão dever ser visto como um criminoso e não apenas como o herói difusor dos princípios da revolução.
* Napoleão criminoso? Imagine só! A idéia é tão chocante quanto a palavra. Dizem que o número de livros escritos a respeito dele é igual a o número de dias que se passaram depois de sua morte. Será que nenhum desses livros trata de seus crimes? Muitas dessas obras se destinam às crianças. Seria possível que o criminoso lhe servisse de exemplo? E os tratados de história nada diriam a respeito disso? E todos esses institutos, fundações e associações que se apegam ruidosamente à perpetuação da memória do imperador: seria possível imaginar que os eminentes acadêmicos que os sustentam teriam coragem de louvar um culpado? E que dizer dos filmes, no cinema, na televisão, realizados com altas somas de dinheiro público proveniente dos impostos ou de adiantamento sobre a receita, que fazem de Napoleão um herói sem defeitos, um modelo para os franceses? (...) (RIBBE, 2008, p.9).
E ainda
* O crime de que falo é precisamente o que foi cometido a partir de 1802 contra os africanos e as populações de origem africana deportados, escravizados e massacrados nas colônias francesas. Nelas, Napoleão restaurou a escravidão e o tráfico que a revolução havia colocado fora da lei oito anos antes. E como a resistência dos haitianos, após a luta heróica dos guadalupenses, tornou impossível a aplicação do seu programa na principal daquelas colônias, a de Saint-Domingue, ele perpetrou massacres (...) (RIBBE, 2008, p.10)
Após a sua independência e o advento dos séculos posteriores a ex-colônia de São Domingos pagaria o preço de ter sido não somente a primeira independência da América Latina, mas por ter sido a primeira independência comandada por populações africanas escravizadas.
O século XX no Haiti
Após a revolução haitiana e a abolição da escravidão a relação indissociável à cultura da cana-de-açúcar apresentou-se como sério obstáculo o desenvolvimento da nação haitiana. Enquanto parte significativa das nações independentes do continente procurava diversificar suas produções na tentativa de acompanhar o avanço industrial, a economia do Haiti permanecia insustentável. Após a independência, durante 150 anos aproximadamente, os haitianos levaram a cabo os planos de Toussain tentando construir uma réplica da nação francesa nas índias ocidentais encontrando um profundo obstáculo. A economia haitiana sem qualquer tipo de ajuda financeira tornou-se condicionada à subsistência.
Este condicionamento, além de resultar em um declínio econômico, abriu brechas às futuras desestabilizações políticas que levaram a intervenções militares no país, só que naquele momento – 1913 – não foram mais os militares franceses que tentavam restabelecer a escravidão e colocar em ordem a colônia de São Domingo e sim as baionetas dos fuzileiros navais norte-americanos que através da emenda Platt (5), consolidavam a idéias da doutrina Moroe (6). Após a primeira guerra mundial e durante o período entre guerras a república independente do Haiti foi sacudida por diversas intervenções militares norte americanas.
É imprescindível destacar que essas intervenções foram responsáveis pela formação de uma elite militar subserviente aos interesses norte-americanos que por sua vez não hesitaram em apoiar – para a preservação dos seus interesses – uma das mais cruéis e sanguinárias ditaduras latina americanas. Um exemplo ilustrativo para a existência e atuação da referida elite militar foram as ditaduras de François Duvallier (Papa Doc) e Jean Claude Duvallier (Baby Doc) que se constituiu como um dos governos mais corrupto, sanguinário, clepitomanos, locupletadores, não apenas do Haiti, mas de toda América Latina e do mundo.
Toda essa sórdida orgia política, naqueles anos de ditadura familiar, teve apoio incondicional do governo estadunidense, evidenciado posteriormente na concessão de asilo político aos responsáveis pelo estabelecimento de tais ditaduras. É importante frisar que com o fim da escravidão no Haiti, a república recém independente foi condicionada a uma monocultura de subsistência de cana-de-açúcar num momento em que parte considerável do continente americano lançava as bases para uma industrialização que evidenciaria sua eficiência nas décadas de 1950 e 1960. Com a drástica redução do espaço ocupado pela cana-de-açúcar no mercado internacional e a concorrência dos produtos industrializados, a situação do Haiti agrava-se profundamente no decorrer do século XX.
O imenso êxodo rural, associado à falta de planejamento urbanístico, dificultado pelo condicionamento haitiano a monocultura, resultou em um país sem as condições mínimas de saneamento básico e infra-estrutura necessária a uma convivência social mínima. Escolas, hospitais, Universidades, são apenas alguns dos principais itens de uma estrutura ausente. Lixo nas cidades, deficiência de segurança alimentar em primeiro lugar seguido de uma segurança pública inexistente, fizeram do Haiti um país impossível de se viver. Com tantas deficiências, a sorte da primeira república negra das Américas e do mundo não podia ser outra, senão, a do país mais pobre da América Latina e um dos mais pobres do mundo compartilhando suas estatísticas com algum dos países africanos, considerados os mais pobres do mundo.
O mais interessante disso tudo é que desde o estabelecimento do condicionamento do Haiti a situação de pobreza a qual o país se encontra – considerando o período anterior ao terremoto - o Haiti permaneceu “algemado, extorquido e assassinado”, sem que nenhum tipo de humanidade fosse demonstrado – como agora se tenta demonstrar - por qualquer indivíduo ou governo que fosse. A população haitiana permaneceu sem infra-estrutura, saneamento básico, vivendo como bicho em meio a ratos, lixo, esgoto, fome, doenças, conservando altos índices de analfabetismo e desnutrição sem que nenhuma campanha de “ajuda humanitária” fosse organizada por quem quer que seja, governos, instituições dentre outros dotados destas possibilidades.
Os indivíduos desinformados, por conveniência ou não, sobre a história e a situação do Haiti, nunca procuraram saber sobre esta geografia. Recentemente ouvi de uma pessoa – estudada – que o Haiti ficava na África, assim como, se localiza também a Jamaica para muitos! Isso é só para se ter uma idéia do espaço que a história do Haiti ocupa em um país onde 45% de seu contingente populacional é afro-descendente (7). O que se pode esperar de um terremoto que atinge sete pontos na escala Richter em um país nas condições citadas no parágrafo anterior? Não podemos nos esquecer que muitas instituições e indivíduos que neste momento estão a enviar “ajuda humanitária” ao povo haitiano são os responsáveis pela lastimável situação do país.
Segundo a Folha de São Paulo, versão on-line, do dia 13/1/2010, “chefe da ONU libera US$ 10 milhões de dólares e diz temer centenas de mortos”. Engraçada a preocupação do chefe da ONU, só após o terremoto ele teme pelas centenas de mortos! E os milhares de mortos do Haiti que a escravidão vitimou no seu período de vigor? E os milhares de mortos haitianos vítimas da falta de infra-estrutura durante todo o tempo que o Haiti esteve na miséria, será que causa ou causou algum temor em alguém? Esses homens conhecem a história, eles sabem do passado desses países, não podemos ser ingênuos em achar que estas pessoas não conhecem a história! Também no dia 13/1/2010 outra manchete hipócrita. “Após tremor banco mundial enviará US$ 175 milhões em ajuda ao Haiti”. Durante todo esse tempo de miséria e caos o banco mundial, sob a ordem estadunidense, sempre proibiu e condicionou empréstimos ao povo haitiano com os “ajustes fiscais” que todos nós sabemos como funciona. Que belo exemplo de humanidade do banco mundial neste momento, não acham?
Os exemplos de solidariedade humana com o Haiti não param por aqui! A união européia, bloco econômico o qual estão inseridos Espanha, Inglaterra, França e Holanda, diga-se de passagem, as antigas potências coloniais que durante séculos disputaram o controle de São Domingos, diante de toda a calamidade haitiana a União européia estudou durante alguns dias quais seriam os prós e contras em enviar a tão necessária “ajuda humanitária”. Segundo a Folha de São Paulo, versão on-line, em 17/1/2010: “União européia estuda ajuda de 100 milhões de euros ao Haiti”. Porém o exemplo mais ilustrativo da hipocrisia e desfaçatez mundial veio na manchete publicada no dia 14/1/2010: “Sarkozy quer reunir Obama e Lula para coordenar ação no Haiti”.
Imaginem só, o presidente da França – logo a França! – que durante o período colonial através do medo e do terror de Napoleão e seu código negro (8), prolongou o máximo de tempo que pôde a preservação da escravidão no Haiti! A França que nos dias correntes apresenta-se como um dos países europeus onde as leis de emigração são as mais radicais de todo o continente europeu, inclusive com os haitianos e africanos e árabes! A França onde o “outro”, ou seja, o pertencente a outra cultura, sempre pareceu uma “ameaça”. Finalmente, a França, um país onde, segundo o Jornal A Tarde do dia 22/3/2001: “Maioria dos franceses se declara racista”.
Finalizando os exemplos ilustrativos da “humanidade” e o do “humanitarismo” ocidental a matéria do dia 17/1/2010 constitui-se como uma aberração: “Bill Clinton e George Bush unem força para salvar o Haiti”. Como comentado anteriormente, desde as primeiras intervenções militares estadunidense no Haiti, o governo americano foi conivente com o fortalecimento de uma elite militar subserviente aos seus interesses geoestratégicos. Estes militares monopolizaram o poder praticamente durante todo o século XX, sem esquecer as ditaduras de François Duvallier (Papa Doc) e Jean Claude Duvallier (Baby Doc) que possuíram um forte apoio americano. A possibilidade de uma posterior “quebra” do monopólio dos militares apresenta-se na proposta levantada pelo partido lavalas (9) e pelo teólogo Jean-Bertrand Aristide nos anos 90, proposta derrubada pelo governo de George Bush (pai), o mesmo que agora une-se a Bill Clinton para “ajudar” o Haiti.
Moral da História: Sarkozy, Bush, França, ONU, Banco Mundial, muitas dessas instituições, governos e indivíduos, sempre souberam da situação calamitosa da sociedade haitiana, porém, nenhum deles jamais moveu uma palha se quer para reverter o sofrimento do povo, muito pelo contrário, sempre exigiram do Haiti aquilo que eles sempre souberam que o país não poderia dar. A conclusão que as evidências apontam com o terremoto do Haiti é que: mais do que uma ajuda humanitária, a tragédia haitiana tem servido para o desencargo de consciência de todos os citados, mais ainda, tem servido para mascarar as intenções políticas por trás de tais ajudas humanitárias. Mais doloroso ainda é que muitos de nós – desinformados – ficamos emocionados ao ver personalidades, instituições, governos e indivíduos fazendo caridade (10) a um povo que eles próprios condicionaram à miséria. Não nos enganemos com as falsas “ajudas humanitárias” às vítimas haitianas!
Devemos também, penso, antes de nos emocionarmos ter a certeza de quanto desse imenso recurso financeiro que tem sido anunciado para “ajudar” o Haiti chegará realmente, pois, pela situação do Haiti e quantidade de dinheiro que tem sido anunciado na mídia, daria não apenas para reconstruir o Haiti, mas tirar a primeira nação negra das Américas do caos. Não percamos tempo para refletir sobre essas questões, temos que fazê-lo rápido, pois, em algumas semanas o Haiti sairá da mídia. Afinal de contas o carnaval está chegando e para os senhores da informação – e muitos de nós – não há motivos para sofrer tanto - se a vida já é um sofrimento! - principalmente se for para sofrer – em um momento tão feliz como o carnaval - junto com aqueles que, fenotipicamente são tão diferentes da elite nacional!
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1 - MÁRCIO LUIS PAIM é aluno do Programa Multidisciplinar em Estudos Étnicos e Africanos do Centro de Estudos Afro-Orientais da Universidade Federal da Bahia.
2 - De acordo com a enciclopédia Mirador “Haiti” significa “terra entre montanhas” devido a sua geografia ser cercada por grandes cadeias montanhosas.
3 - JAMES, C.L.R. Os jacobinos negros: Toussaint L’Ouverture e a revolução de São Domingos. São Paulo: Boitempo editorial, 2000.
4 - BANTON, Michael. A idéia de raça. Lisboa: edições 70, 1977; BAMSHAD, Michael J e OLSON, Steve. E. Ambigüidades que limitam uma definição de raça. Scientific American, Brasil, nº16, pp.68-75, edição especial genoma o código da vida, 2006.
5 - BANDEIRA, Luiz Alberto Muniz. A formação do império americano: da guerra contra a Espanha à guerra contra o Iraque. Rio de Janeiro: civilização brasileira, 2006.
6 - Idem.
7 - Ver http://www.ibge.gov.br/home/
8 - RIBBE, Claude. Os crimes de Napoleão: atrocidades que influenciaram Hitler. Rio de Janeiro: Record, 2008.
9 - ARISTIDE, Jean-Bertrand. Todo homem é um homem. Rio de Janeiro: Paz e terra, 1995.
10 - GOODY, Jack. O roubo da história: como os europeus se apropriaram das idéias e invenções do oriente. São Paulo: Editora contexto, 2007
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