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CALENDÁRIO NEGRO – DEZEMBRO

1 – O flautista Patápio Silva é contemplado com a medalha de ouro do Instituto Nacional de Música, prêmio até então nunca conferido a um negro (1901)
1 – Nasce no Rio de Janeiro (RJ) Otto Henrique Trepte, o compositor Casquinha, integrante da Velha Guarda da Portela, parceiro de Candeia, autor de vários sambas de sucesso como: "Recado", "Sinal Aberto", "Preta Aloirada" (1922)
1 – O líder da Revolta da Chibata João Cândido após julgamento é absolvido (1912)
1 – Todas as unidades do Exército dos Estados Unidos (inclusive a Força Aérea, nesta época, uma parte do exército) passaram a admitir homens negros (1941)
1 – Rosa Parks recusa-se a ceder o seu lugar num ônibus de Montgomery (EUA) desafiando a lei local de segregação nos transportes públicos. Este fato deu início ao "milagre de Montgomery” (1955)
2 – Dia Nacional do Samba
2 – Nasce em Magé (RJ) Francisco de Paula Brito. Compôs as primeiras notícias deste que é hoje o mais antigo jornal do Brasil, o Jornal do Comércio (1809)
2 – Nasce em Salvador (BA) Deoscóredes Maximiliano dos Santos, o sumo sacerdote do Axé Opô Afonjá, escritor e artista plástico, Mestre Didi (1917)
2 – Inicia-se na cidade de Santos (SP), o I Simpósio do Samba (1966)
2 – Fundação na cidade de Salvador (BA), do Ilê Asipa, terreiro do culto aos egugun, chefiado pelo sumo sacerdote do culto Alapini Ipekunoye Descoredes Maximiliano dos Santos, o Mestre Didi (1980)
2 – Começa em Valença (RJ), o 1º Encontro Nacional de Mulheres Negras (1988)
3 – Frederick Douglas, escritor, eloquente orador em favor da causa abolicionista, e Martin R. Delaney fundam nos Estados Unidos o North Star, jornal antiescravagista (1847)
3 – Nasce em Valença(BA), Maria Balbina dos Santos, a líder religiosa da Comunidade Terreiro Caxuté, de matriz Banto-indígena, localizada no território do Baixo Sul da Bahia, Mãe Bárbara ou Mam’eto kwa Nkisi Kafurengá (1973)
3 – Numa tarde de chuva, em um bairro do subúrbio do Rio de Janeiro, é fundado o Coletivo de Escritores Negros do Rio de Janeiro (1988)
4 – Dia consagrado ao Orixá Oyá (Iansã)
4 – 22 marinheiros, revoltosos contra a chibata, castigo físico dado aos marinheiros, são presos pelo Governo brasileiro, acusados de conspiração (1910)
4 – Realizado em Valença (RJ), o I Encontro Nacional de Mulheres Negras, que serviu como um espaço de articulação política para as mais de 400(quatrocentas) mulheres negras eleitas como delegadas nos dezoito Estados brasileiros (1988)
5 – Depois de resistir de 1630 até 1695, é completamente destruído o Quilombo dos Palmares (1697)
5 – Nasce em Pinhal (SP) Otávio Henrique de Oliveira, o cantor Blecaute (1919)
5 – Nasce no Rio de Janeiro (RJ) o compositor Rubem dos Santos, o radialista Rubem Confete (1937)
5 – O cantor jamaicano Bob Marley participa do show "Smile Jamaica Concert", no National Hero's Park, dois dias depois de sofrer um atentado provavelmente de origem política (1976)
6 – Edital proibia o porte de arma aos negros, escravos ou não e impunha-se a pena de 300 açoites aos cativos que infringissem a lei. (1816)
6 – Nasce no Rio de Janeiro (RJ) Jorge de Oliveira Veiga, o cantor Jorge Veiga (1910)
6 – Nasce no Rio de Janeiro (RJ) Emílio Vitalino Santiago, o cantor Emílio Santiago (1946)
6 – Realização em Goiás (GO) do Encontro Nacional de Mulheres Negras, com o tema “30 Anos contra o Racismo e a Violência e pelo Bem Viver – Mulheres Negras Movem o Brasil” (2018)
7 – Nasce Sir Milton Margai, Primeiro Ministro de Serra Leoa (1895)
7 – Nasce no Rio de Janeiro (RJ) Luís Carlos Amaral Gomes, o poeta Éle Semog (1952)
7 – Clementina de Jesus, a "Mãe Quelé", aos 63 anos pisa o palco pela primeira vez como cantora profissional, no Teatro Jovem, primeiro show da série de espetáculos "Menestrel" sob a direção de Hermínio Bello de Carvalho (1964)
8 – Nasce em Salvador(BA) o poeta e ativista do Movimento Negro Jônatas Conceição (1952)
8 – Fundação na Província do Ceará, da Sociedade Cearense Libertadora (1880)
8 – Nasce no Harlem, Nova Iorque (EUA), Sammy Davis Jr., um dos artistas mais versáteis de toda a história da música e do "show business" americano (1925)
8 – Nasce no Rio de Janeiro (RJ) Alaíde Costa Silveira, a cantora Alaíde Costa (1933)
8 – Dia consagrado ao Orixá Oxum
9 – Nasce em São Paulo (SP) Erlon Vieira Chaves, o compositor e arranjador Erlon Chaves (1933)
9 – Nasce em Monte Santo, Minas Gerais, o ator e diretor Milton Gonçalves (1933)
9 – Nasce em Salvador/BA, a atriz Zeni Pereira, famosa por interpretar a cozinheira Januária na novela Escrava Isaura (1924)
10 – O líder sul-africano Nelson Mandela recebe em Oslo, Noruega o Prêmio Nobel da Paz (1993)
10 – O Presidente da África do Sul, Nelson Mandela, assina a nova Constituição do país, instituindo legalmente a igualdade racial (1996)
10 – Dia Internacional dos Direitos Humanos, instituído pela ONU em 1948
10 – Fundação em Angola, do Movimento Popular de Libertação de Angola - MPLA (1975)
10 – Criação do Programa SOS Racismo, do IPCN (RJ), Direitos Humanos e Civis (1987)
11 – Nasce em Gary, condado de Lake, Indiana (EUA), Jermaine LaJaune Jackson, o cantor, baixista, compositor, dançarino e produtor musical Jermaine Jackson (1954)
11 – Festa Nacional de Alto Volta (1958)
11 – Surge no Rio de Janeiro, o Jornal Redenção (1950)
12 – O Presidente Geral do CNA, Cheif Albert Luthuli, recebe o Prêmio Nobel da Paz, o primeiro a ser concedido a um líder africano (1960)
12 – Nasce em Leopoldina (MG) Osvaldo Alves Pereira, o cantor e compositor Noca da Portela, autor de inúmeros sucessos como: "Portela na Avenida", "é preciso muito amor", "Vendaval da vida", "Virada", "Mil Réis" (1932)
12 – Nasce no Rio de Janeiro (RJ) Wilson Moreira Serra, o compositor Wilson Moreira, autor de sucessos como "Gostoso Veneno", "Okolofé", "Candongueiro", "Coisa da Antiga" (1936)
12 – Independência do Quênia (1963)
13 – Dia consagrado a Oxum Apará ou Opará, a mais jovem entre todas as Oxuns, de gênio guerreiro
13 – Nasce em Exu (PE) Luiz Gonzaga do Nascimento, o cantor, compositor e acordeonista Luiz Gonzaga (1912)
14 – Rui Barbosa assina despacho ordenando a queima de registros do tráfico e da escravidão no Brasil (1890)
15 – Machado de Assis é proclamado o primeiro presidente da Academia Brasileira de Letras (1896)
16 – Nasce na cidade do Rio Grande (RS) o político Elbert Madruga (1921)
16 – O Congresso Nacional Africano (CNA), já na clandestinidade, cria o seu braço armado (1961)
17 – Nasce no Rio de Janeiro (RJ) Augusto Temístocles da Silva Costa, o humorista Tião Macalé (1926)
18 – Nasce em King William's Town, próximo a Cidade do Cabo, África do Sul, o líder africano Steve Biko (1946)
18 – A aviação sul-africana bombardeia uma aldeia angolana causando a morte dezenas de habitantes (1983)
19 – Nasce nos Estados Unidos, Carter G. Woodson, considerado o "Pai da História Negra" americana (1875)
19 – Nasce no bairro de São Cristóvão (RJ) Manuel da Conceição Chantre, o compositor e violonista Mão de Vaca (1930)
20 – Abolição da escravatura na Ilha Reunião (1848)
20 – Nasce em Salvador (BA) Carlos Alberto de Oliveira, advogado, jornalista, político e ativista do Movimento Negro, autor da Lei 7.716/1989 ou Lei Caó, que define os crimes em razão de preconceito e discriminação de raça ou cor (1941)
21 – Nasce em Los Angeles (EUA) Delorez Florence Griffith, a atleta Florence Griffith Joyner - Flo-Jo, recordista mundial dos 100m (1959)
22 – Criado o Museu da Abolição, através da Lei Federal nº 3.357, com sede na cidade do Recife, em homenagem a João Alfredo e Joaquim Nabuco (1957)
23 – Nasce em Louisiana (EUA) Sarah Breedlove, a empresária de cosméticos, filantropa, política e ativista social Madam C. J. Walker, primeira mulher a construir sua própria fortuna nos Estados Unidos ao criar e vender produtos de beleza para mulheres negras. Com sua Madam C.J. Walker Manufacturing Company, ela fez doações em dinheiro a várias organizações e projetos voltados à comunidade negra (1867)
23 – Criação no Rio de Janeiro, do Grupo Vissungo (1974)
23 - O senador americano Jesse Jackson recebe o título de Cidadão do Estado do Rio de Janeiro e o diploma de Cidadão Benemérito do Rio de Janeiro durante visita ao Brasil, por meio do Projeto de Resolução nº 554 de 1996, de autoria do Deputado Graça e Paz (1996)
24 – João Cândido, líder da Revolta da Chibata e mais 17 revoltosos são colocados na "solitária" do quartel-general da Marinha (1910)
25 – Parte do Rio de Janeiro, o navio Satélite, levando 105 ex-marinheiros participantes da Revolta da Chibata, 44 mulheres, 298 marginais e 50 praças do Exército, enviados sem julgamento para trabalhos forçados no Amazonas. 9 marujos foram fuzilados em alto-mar e os restantes deixados nas margens do Rio Amazonas (1910)
25 – Nasce no Município de Duque de Caxias, (RJ) Jair Ventura Filho, o jogador de futebol Jairzinho, "O Furacão da Copa de 1970" (1944)
26 – Primeiro dia do Kwanza, período religioso afro-americano
27 – Nasce em Natal (RN), o jogador Richarlyson (1982)
28 – O estado de São Paulo institui o Dia da Mãe Preta (1968)
28 – Nasce na Pensilvânia (EUA), Earl Kenneth Hines, o pianista Earl “Fatha” Hines, um dos maiores pianistas da história do jazz (1903)
29 – Nasce no Rio de Janeiro (RJ) Édio Laurindo da Silva, o sambista Delegado, famoso mestre-sala da Estação Primeira de Mangueira (1922)
29 – Nasce em Diourbel, Senegal, Cheikh Anta Diop, historiador, antropólogo, físico e político (1923)
30 – Nasce no Rio de Janeiro (RJ) Maria de Lourdes Mendes, a jongueira Tia Maria da Grota (1920)
30 – Nasce em Cypress, Califórnia (EUA), Eldrick Tont Woods, o jogador de golfe Tiger Woods, considerado um dos maiores golfistas de todos os tempos (1975)
31 – Nasce no Morro da Serrinha, Madureira (RJ), Darcy Monteiro, músico profissional, compositor, percussionista, ritmista, jongueiro, criador do Grupo Bassam, nome artístico do Jongo da Serrinha (1932)
31 – Nasce na Virgínia (EUA), Gabrielle Christina Victoria Douglas, ou Gabby Douglas, a primeira pessoa afro-americana e a primeira de ascendência africana de qualquer nacionalidade na história olímpica a se tornar campeã individual e a primeira ginasta americana a ganhar medalha de ouro, tanto individualmente como em equipe, numa mesma Olimpíada, em 2012 (1995)
31 – Fundada pelo liberto Polydorio Antonio de Oliveira, na Rua General Lima e Silva nº 316, na cidade de Porto Alegre, a Sociedade Beneficente Floresta Aurora (1872)
31 – Dia dos Umbandistas



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quarta-feira, 3 de junho de 2009

A grande mídia contra as ações afirmativas (Fernando Conceição)

O que o Estado Democrático de Direito, o que o republicanismo, o que o interesse público podem esperar quando se alinham, em uníssono à maneira de campanha, três conglomerados de comunicação que, no Brasil, são os proprietários privados dos mais influentes veículos da imprensa nacional? Uma única coisa: o abuso do direito constitucional à liberdade de expressão e de opinião. A coação dos demais poderes institucionais. O desrespeito ao princípio de igualdade de oportunidade, cerne da democracia.
Pois é exatamente o que a sociedade brasileira assiste hoje, estupefata, com a sórdida manipulação encampada pela Rede Globo, Grupo Folha e Editora Abril – respectivamente donos da TV aberta de maior audiência, com suas filiadas em todo o território brasileiro, controladores da TV por assinatura, de O Globo, de emissoras de rádio; dos jornais Folha de S. Paulo e Valor Ecnômico, do poderoso portal UOL; da maior e mais potente revista noticiosa semanal, Veja, e de vários outros tentáculos midiáticos articulados entre si.
Cotas são o inferno
Esse poderosíssimo Leviatã apresenta-se na atual conjuntura como o sucedâneo do Leviatã hobbesiano. O propósito do monstro é amedrontar a sociedade repetindo insaciável, incontinenti e monocordiamente que o Inferno em breve se instalará no Brasil. Incansavelmente a Rede Globo, a Folha e Veja anunciam que isso já tem hora e data marcada.
O Brasil será transformado no reino de Lúcifer a partir do momento em que deputados e senadores em Brasília votem pela aprovação de dois projetos que tramitam no Congresso Nacional, um deles há mais de decênio: o Estatuto da Igualdade Racial (projeto de lei 6564/05, do senador Paulo Paim, PT), e o projeto de lei 73/99 (da deputada Nice Lobão, DEM) incorporado ao projeto de lei 3.627/2004, do governo federal. Ambos estabelecem, pela primeira vez no país, um sistema de políticas sociais compensatórias, inclusive de acesso às universidades públicas federais, como forma de corrigir as profundas desigualdades repercutidas até hoje pelos mais de 300 anos de escravidão negra e indígena que marcam a história socioeconômica brasileira.
A grande mídia simplifica tais políticas compensatórias, rotulando-as como projeto de cotas "raciais". Isso tem reduzido a abrangência daquelas proposições e tornado irracional o debate. A questão de "raça" é posta no primeiro plano, em uma sociedade que custa a acreditar na existência do racismo em suas relações cotidianas e institucionais. Um povo que acredita, a despeito do desmascaramento do mito, ser o Brasil uma "democracia racial", mercê de todos os mais respeitáveis dados e índices de medição da estrutura demográfica afirmarem sempre o contrário. A sociedade brasileira é cingida por uma forte persistência da herança escravocrata, que atinge "pretos" e "pardos" (na definição do IBGE), colocando-os como grupo nas piores posições da pirâmide sócio-econômica.
Racismo como ideologia
Não são os propositores daqueles projetos de lei que inventaram a noção de "raça" como fator de identidade atribuída às pessoas de acordo com seus papéis e o lugar social por elas ocupado na formação da sociedade brasileira.
"Raça" sempre foi utilizada pelos "senhores da terra", desde o nascedouro da empreitada colonial nas Américas, como traço distintivo. Aos africanos, trazidos como escravos para todos os gêneros de labuta, foi-lhes pregada a definição de "negros" como marca de um tipo de animal racialmente inferior aos demais humanos. Não importaram as suas diferenciações culturais, ou étnicas, tampouco as suas tradições de origem. Todos são (ou eram) da "raça" negra, consequentemente podendo ser escravos pelo estatuto do ordenamento jurídico da Colônia e do Império. O racismo foi uma das ferramentas ideológicas de organização da exploração colonial. A República não solucionou, até o presente, essa equação.
Qual patriota – e a pátria, já disse alguém, é o último refúgio dos canalhas – quer ver seu país "pegar fogo", ter a sua "harmoniosa" população "separada" entre "brancos" (no Brasil identificados como rico ou doutor) e "negros" (sempre suspeitos e vilões)? Quem quer ver a "paz" que hoje reina, como antanho, desde o princípio do escravismo colonial, quem quer todas essas nossas tradições de cordialidade (no fundo perversas) perdidas por conta da aprovação do Estatuto da Igualdade Racial e do projeto 3.627?
Nessa tecla batem, de forma orquestrada e combinada, os grandes conglomerados de mídia. Com seus impressos, telejornais, experts em antropologia social, rádios, internet, publicações, almejam influenciar – e muito – os humores e a disposição da opinião pública, isto é, dos brasileiros formadores de opinião e dos eleitores.
Sem-precedentes a não ser no abolicionismo
O Estatuto e o outro projeto de lei seriam obra demoníaca (ou stalinista?). Permitir que congressistas tenham o livre-arbítrio de votar abalizados por razões éticas, de senso de justiça, de consciência histórica dos horrores que até hoje vigem da discriminação negativa contra os negros, isto a Rede Globo, a Folha de S. Paulo e a Veja simplesmente não querem aceitar. Portanto, mobilizam-se, com poucos precedentes similares nos debates legislativos, para derrotar aquelas proposições. Reeditam dessa forma, 130 anos depois, a mesma tipologia das paixões verificadas durante a árdua luta que resultou na abolição da escravatura no país.
Todos os artigos, todas as matérias, todos os editoriais veiculados direcionam-se a semear o pânico e a disseminar a idéia de que assim procede a mídia em defesa da unidade e do bem nacionais. Todas as reportagens ou entrevistas são produzidas e editadas de forma a referendar essa tese.
O método é simples e corriqueiro. Para disfarçar o flagrante desrespeito às regras básicas do jornalismo em sociedades abertas (deve-se dar voz a todas as opiniões), esses grandes veículos usam a fórmula 10 para 1. Dão espaço e peso diferenciados aos que são contrários àqueles projetos e ao demais. Este, já que favorável, tem a sua opinião, posta no contexto das outras contrárias, com um enquadramento que remete ao bizarro, ao fora de propósito. Vira exotismo defender políticas compensatórias para os descendentes de escravos no Brasil, que são a esmagadora maioria dos pobres e miseráveis.
Interesses anti-sociais das empresas
Rede Globo e seu noticioso carro-chefe, o Jornal Nacional – já classificado por seu editor como produto dirigido a gente de mentalidade de Homer Simpson –, Veja e Folha de S.Paulo querem convencer os formadores de opinião, eleitores e seus representados no Congresso Nacional de que essas empresas privadas (ou seja, Globo, Folha e Abril, assim como os seguidores de tal ideário) defendem nessa campanha o que é melhor para "o país". No entanto, os formadores de opinião, e principalmente os atuais detentores de mandatos parlamentares, deveriam atentar para a seguinte obviedade escamoteada nesse debate: Rede Globo, Folha e Editora Abril são crias alimentadas pela última ditadura militar que destruiu a democracia, prendeu, torturou, matou e fechou, por consequência, esse mesmo Congresso Nacional. Perseguiu e cassou mandatos de parlamentares e tantos outros líderes sociais e políticos não-adesistas.
Entre os sombrios anos 1960 ao ocaso dos anos 1980, a maior parte do tempo foram conflitantes e até mesmo opostos os interesses republicanos e os interesses dessa hoje tríplice-aliança. Essas empresas se fortaleceram, se beneficiaram e se consolidaram, cada uma ao seu modo, pelas facilitações que o regime militar lhes proporcionou. Apoiaram abertamente ou foram coniventes em algumas fases com aquela ditadura.
Sobre a Globo há vasto corpus documental a respeito, dentro dele a existência de uma CPI. Carlos Guilherme Mota e Maria Helena Capelato (1980) registraram em História da Folha de S. Paulo: 1921-1981 a estratégia de posicionamento político que fez este jornal jamais ter sofrido sequer de leve os abusos ditatoriais infligidos ao seu concorrente local, O Estado de S.Paulo. A Editora Abril sempre flertou com a cúpula do sistema, tendo em Golbery do Couto e Silva um dos seus referenciais de conduta e em Antonio Carlos Magalhães um dos seus queridinhos.
Dourando a pílula do comprometimento
A Folha buscou se redimir, a partir dos tempos de Claudio Abramo e mais ainda com Boris Casoy, na memorável campanha das Diretas-Já, que na primeira metade da década de 1980 exigia nas ruas o retorno ao Estado de Direito, com o estabelecimento de eleições livres para a Presidência da República. Naquela vez, Folha, Veja e Globo ficaram em campos diferenciados.
A vontade da poderosíssima Globo no período todos nós conhecemos. Se opôs tenazmente a que o povo brasileiro readquirisse a sua soberania por meio do voto. Ignorou ou mentiu, seguindo um padrão jornalístico de obediência à linha-dura do regime à qual serviu o tempo todo com denodo, demonizando os adversários.
Provas ainda piores de que a Globo, quando quer, é o reino da perversão dos interesses cidadãos estão nos anais da história brasileira recente em dois escandalosos episódios. O que ficou conhecido como "Caso Globo/Proconsult" e o debate final da campanha eleitoral de 1989, entre Lula e Fernando Collor. No primeiro, a Globo foi pega de calças curtas na sua ignóbil tentativa de manipular contra Leonel Brizola o resultado da eleição para governador do Rio de Janeiro, em 1982. No segundo, a exibição no Jornal Nacional da edição do debate, beneficiando a performance de Collor, até hoje é estudada como um case do histórico de abuso de poder que essa rede televisiva possui.
Nesse segundo episódio, o então todo-poderoso diretor da Central Globo de Jornalismo, Armando Nogueira, teve pruridos de hombridade, foi ao cacique Roberto Marinho e apresentou sua demissão do cargo. Vemos a confissão envergonhada dele para o teledocumentário Beyond Citizen Kane (Simon Hartog, 1993), que a Globo judicialmente censurou, impedindo sua exibição em todo o território brasileiro.
Um histórico de sujeiras
Esse documentário (assista aqui), que circulou em cópias piratas, é um consistente trabalho jornalístico da TV britânica, mostrando os tentáculos do império de Roberto Marinho e suas ramificações no comando do poder político nacional. Permitir a sua difusão à época seria contrária à estratégia que com o retorno da democracia a Globo traçou, visando apagar da memória o seu passado macbethiano.
Foi nesse vácuo, por exemplo, que alguma programação da emissora, como o Fantástico, até se deu ao luxo de exibir uma reportagem sobre o nascente Movimento Pelas Reparações dos Afrodescentente, enfocando o surgimento no Brasil de uma articulação social por políticas compensatórias de ação afirmativa.
Entretanto, pruridos iguais ao de Nogueira hoje não possui Ali Kamel. Este profissional, agora à frente do Jornalismo da TV Globo, é um dos comandantes do ataque sem trégua ao Estatuto da Igualdade Racial e ao Projeto de Lei do Executivo. Age de cima de um armamento pesado de artilharia, muito além do que poderiam vis mortais, como o autor dessas mal-traçadas linhas, desprovidos estes do instrumental fabuloso que são os comandos da TV Globo, da Veja, da Folha de S.Paulo. Nem um desses veículos abre espaço e tempo equitativos para o exercício de opinião contrária às suas neste tema. Seus colunistas e articulistas, com raras exceções de um Elio Gaspari, têm todos não-surpreendentemente o mesmo ponto de vista de quem lhes paga salários e bônus.
Trapaça e covardia no debate
Não há em toda a grande mídia brasileira um único articulista ou comentarista negro comprometido com a luta anti-racista contratualmente assegurado para, de forma regular, emitir sua opinião nesses veículos. Mesmo o limitado espaço da seção "Tendências/Debates" da página 3 da Folha, ou o seu suplemento "Mais!", nos últimos oito anos têm sistematicamente rejeitado colaborações contestadoras à sua tese. Não faltam pessoas com esse ponto de vista capacitadas para publicar na Folha, e uma lista de intelectuais comprometidos na luta por ações afirmativas foi entregue à Secretaria de Redação desse veículo por uma representação do Movimento Negro há mais de três anos, em visita àquele jornal. Certamente a lista foi para o lixo.
Diante de tão avassaladora campanha "cívica", mentalidades conservacionistas do establishment sentem-se agora encorajadas a bradar as suas posições contra as mudanças institucionais previstas por aqueles dois projetos de lei. Vêem-se estimuladas essas vozes porque sabem poder contar com a tutela dos grandes veículos de comunicação. Não temem, neste momento, a reação adversa das ruas. Porque as ruas estão desmobilizadas pela insuficiência das forças sociais que, sabedoras da justeza política das ações compensatórias aos estratos sempre excluídos (por razões históricas), acham-se órfãs do poder belicoso dos que possuem o controle da grande mídia.
Ouso dizer que por trás de todo esse poder esconde-se a prepotência dos covardes. Em breve eles também pressionarão os integrantes do Supremo Tribunal Federal, quando a matéria for ali analisada.
É esta covardia da Globo, da Veja e da Folha que interdita o nosso acesso equânime aos seus tempos e espaços. Ali Kamel jamais nos convidaria para um debate desarmado, ainda que em ambiente por ele dominado, em qualquer um dos seus jornalísticos ou talk shows cuja edição seja honesta. Otavio Frias Filho, para cujo jornal muitas vezes no passado escrevi, tendo dois textos meus reeditados em coletâneas organizadas pela Publifolha – e a partir dos quais produzi minha tese de doutorado – não me ofereceria em sua Folha um lugar de articulista frequente em contraponto ao seu pensamento. E Veja, para estampar uma "página-amarela" que fosse, somente se eu "revelasse" que Lúcifer não existe no além, Lúcifer é a "alcunha" de Luiz Inácio Lula da Silva.
Como as coisas assim não se darão, ou os defensores e interessados pela democratização verdadeira das relações sociais no Brasil retomam aguerridamente a sua militância, pressionam os parlamentares, ganham as ruas e outros espaços de cidadania; ou, então... adeus às mudanças.
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P.S. – Uma nota adicional. Comecei a redigir este artigo em Madri, Espanha. Estou na Europa há oito meses como bolsista de pós-doutorado da Capes no Lateinamerika Institut da Freie Universität Berlim, verificando a presença e influência do geógrafo Milton Santos no debate intelectual em países europeus, subsídio para escrever a biografia autorizada dele. Dia desses tive de me deslocar em ônibus para Salamanca. Ao desembarcar na estação, à porta do veículo vieram me recepcionar três homens que se identificaram como agentes da polícia local. Eu era o único negro entre os demais passageiros e não estava chegando ao país naquele momento. Fui o único detido e submetido aos olhares suspeitosos dos demais.
Não se tratava de agentes da Imigração. Eram policiais comuns à paisana, que me levaram a um cubículo, me retiraram os documentos e remexeram minha mochila, cheia de livros – para a surpresa confessa deles – e folhearam meu passaporte com comentários jocosos sobre o número de viagens marcado por vários vistos ali apostos. Telefonaram para sei lá quem, ditando meus nome e sobrenome. Depois do vexame e do constrangimento, permitiram que eu fosse encontrar com um acadêmico da universidade local, estudioso da obra do brasileiro. A essa altura eu já tinha perdido meu humor.
Registro aqui o fato para ilustrar uma simples verdade, que se tenta escamotear: é muito fácil, para os prepostos do poder (público ou privado) saber quem é negro. Afirmo em resposta à questão bizantina levantada pelos inimigos das cotas. No Brasil, episódios como esse são banais. Na Europa frequentemente ocorrem. A cor da pele subsiste como valor de distinção, de discriminação e preconceito. Gostemos ou não, esses são os fatos.

Fonte: Observatório da imprensa

Fernando Conceição é Professor da FACOM-UFBA e faz estágio de Pós-Doutorado na Universidade Livre de Berlim (Freie Universität Berlin), junto ao Lateinamerika-Institut, em pesquisa sobre o impacto do pensamento de Milton Santos no debate sobre a nova fase de globalização nos grupos de pesquisa e entre intelectuais que discutem o tema na Europa (2008-2009)

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