A  sociedade competitiva e os preconceitos geram uma violência que deve  ser combatida pela escola. Ensinar a viver juntos é fundamental,  conhecendo antes a si mesmo para depois conhecer e respeitar o outro na  sua diversidade. A melhor maneira de resolver os conflitos é  proporcionar formas de buscar projetos e objetivos em comum, através da  cooperação, pois assim ao invés de confrontar forças opostas, soma-se a  diversidade para fortalecer as construções coletivas (Jacques Delors, UNESCO, MEC, Cortez Editora, São Paulo, 1999).
De  acordo com Delors, a transmissão de conhecimento sobre a diversidade  humana, bem como a tomada de consciência das semelhanças e da  interdependência entre todos os seres humanos do planeta constituem  fundamentos da educação. Entretanto, às vésperas do Ano Internacional  dos Afrodescendentes, o Ministério da Educação do Brasil rejeita  consideração do Conselho Nacional de Educação, que atento às Leis que  regem a Educação Nacional, pondera sobre a distribuição do livro de  literatura infantil Caçadas de Pedrinho[1],  de Monteiro Lobato, que, originalmente publicado no ano de 1933,  difunde visão estereotipada sobre o negro e o universo africano,  apresentando personagens negras subservientes, pouco inteligentes, até  mesmo aludindo a animais como o macaco e o urubu quando se referem à  personagem negra, como no trecho: trechos da obra dizem: "Tia Nastácia,  esquecida dos seus numerosos reumatismos, trepou, que nem uma macaca de  carvão".
Os  movimentos sociais negros há tempos reivindicam ação substantiva por  parte do Estado brasileiro em políticas públicas para a educação das  relações étnico-raciais. Os movimentos sociais brancos e a elite, por  sua vez, recusam toda e qualquer medida que visa combater o racismo e  seus derivados na sociedade brasileira. Por sua vez, identificam-se  setores progressistas da sociedade que lutam pelos direitos humanos,  direitos das mulheres, gays e indígenas, mas que infelizmente se calam  diante da luta antirracista. 
Na  questão em debate, de maneira previsível, debocham da pesquisadora e  professora universitária e conselheira do CNE Nilma Lino Gomes,  responsável maior pelo parecer, que possui formação intelectual que não  fica atrás de nossa elite branca, uma vez que possui doutorado pela  Universidade de São Paulo e Pós-Doutorado na Universidade de Coimbra,  sob orientação de um dos maiores nomes da intelectualidade atual, a  saber, Boaventura de Sousa Santos é. Mesmo com esse histórico  intelectual, ela tem sido vista pelos racistas de plantão como  incompetente e racista ao inverso. Isso somente reforça a obsessão pela  continuidade da estrutura racista em nossa sociedade. Sobre o autor,  Monteiro Lobato, nascido no século XIX, eugenista convicto, diz-se  apenas ser uma referencia clássica. Certamente uma clássica escolha da  elite nacional, que do alto de sua arrogância e prepotência acredita que  seus eleitos sejam intocáveis e não passíveis de qualquer crítica e  consideração.
O  MEC tem o dever de combater qualquer tipo de situação discriminatória  para qualquer grupo racial. Assim, o que deve ganhar nossa atenção nessa  contenda é o fato de que mesmo o edital do PNBE/2010, estabelecido pelo  MEC/FNDE, ter traçado como objetivo a “Observância de princípios  éticos necessários à construção da cidadania e ao convívio social  republicano” e ter estabelecido, conforme anexo III do referido edital,  que “Serão excluídas as obras que: 1.3.1. veicularem estereótipos  e preconceitos de condição social, regional, étnico- racial, de gênero,  de orientação sexual, de idade”, temos um ministro que defende a  distribuição irrestrita do livro por compreendê-lo como adequado para a  educação de crianças em pleno processo de socialização. 
Considerando  que os doutos e doutas que administram o MEC leram Jaques Delors, Paulo  Freire, Edgar Morin e tantos outros que adoram citar, não se pode  alegar ingenuidade por parte da equipe diretiva do MEC, que aceitou  parecer favorável à compra e à distribuição desse livro nas escolas  públicas, cujo conteúdo fere o próprio edital por eles instituído. O que  deve tomar o centro dessa discussão é o fato de o MEC anunciar uma  política que vai ao encontro do disposto nas leis e também das  reivindicações dos movimentos negros organizados, em nível nacional e  internacional, mas na prática permitir o descumprimento de seu edital. 
Ao  ferir o edital, o próprio MEC abre precedente para que que as editoras,  cujas obras tenham sido excluídas por veicularem estereótipos,  reivindiquem também a distribuição dos livros excluídos.  Por  que somente Lobato com estereótipo racial? Que tal o MEC também  distribuir literatura sexista? Que tal textos com manifestações anti-semitas?  Será que assim a  sociedade se incomodaria?
Mas,  por enquanto, mais uma vez magistralmente setores conservadores e/ou  tranquilos com as consequências da discriminação racial nesta sociedade  buscam inverter a discussão, de modo a que o maior problema passe a ser o  tal “o racismo ao revés e a radicalidade dos movimentos negros”, e  joga-se para debaixo do tapete o que deveria ser o centro da análise: o  esfacelamento dos objetivos de combater a disseminação de estereótipos e  preconceitos na política do PNBE, MEC. 
Sejamos  de fato coerentes e anti-racistas, reconheçamos a não-observação aos  critérios do estabelecidos no Edital do PNBE/2010, insistamos na  pergunta e exijamos do MEC uma pronta resposta: o que de fato ele tem  realizado, quanto tem investido e qual a consistência e a efetividade de  suas realizações, sobretudo em comparação com o que tem investido nas  demais questões ligadas à diversidade e aos grupos historicamente  discriminados? Dos livros selecionados pelo PNBE 2010, quantos favorecem  a educação das relações de gênero? Quantos promovem o conhecimento  positivo sobre a história e cultura dos povos indígenas?  Se o MEC  tivesse respeito por nós, seríamos informados sobre o cumprimento das  metas para a implementação do artigo 26ª da Lei de Diretrizes e Bases da  Educação (LDB) (Lei n. 9394/96), que se refere à obrigatoriedade do  ensino de História e Cultura Afro-Brasileiras, indo ao encontro de  tratados internacionais como a Convenção Contra a Discriminação  na Educação (1960) e o Plano de Ação decorrente da III Conferência  Mundial contra o Racismo, a Discriminação Racial, a Xenofobia e  Intolerância Correlata (2001), ambos sob os auspícios da Unesco. 
Em 17 de abril de 2008, em entrevista à Agência Brasil,  apos receber críticas sobre o retrocesso nas políticas para o combate  ao racismo, o diretor do Departamento de Educação para Diversidade e  Cidadania do MEC, Armênio Schmidt, confirmou a suspensão da distribuição  de material didático e de ações de formação de professores na área  étnico-racial em 2007. Segundo ele, a interrupção, apenas externa, nas  ações voltadas à questão racial ocorreu por causa das mudanças no  sistema de financiamento do MEC. Para o diretor tal suspensão se  justificava pelo fato de o MEC estar, em 2007, “construindo uma nova  forma de indução de políticas, de relação com estados e municípios, que  foi o Programa de Ações Articuladas”. Para ele: “Durante o ano passado  [2007] realmente não houve publicações e formação de professores. Mas,  na nossa avaliação, não houve um retrocesso, porque isso vai  possibilitar uma nova alavanca na questão da Lei [10.639]. Agora estados  e municípios vão poder solicitar a formação de professores na sua rede,  e o MEC vai produzir mais publicações e em maior número”[2].
Em  2010, além de não percebermos o fortalecimento da política, tampouco a  retomada das publicações e uma consistente e sistemática formação de  professores, flagramos o MEC permitindo a participação de livro cujo  conteúdo veicula estereótipos e preconceitos contra o negro e o universo  africano, constituindo assim flagrante inobservância das normas  estabelecidas.
O  atual presidente Lula, em seu começo de mandato, evidenciou, no campo  da educação, a importância do combate ao racismo, promulgando a Lei  10.639/03, que, como já mencionado, alterou a LDB, tornando obrigatório o  ensino de história e cultura afro-brasileiras na Educação Básica. Tal  alteração contou com a pronta atenção do CNE, que, sob responsabilidade  da conselheira Petronilha Beatriz Goncalves e Silva, elaborou as  Diretrizes Curriculares Nacionais para o ensino das Relações  Étnico-Raciais e de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana  (CNE/CP 3/2004), cuja homologação foi assinada pelo então ministro da  Educação, Tarso Genro. Contudo, embora conte com 83% de aprovação por  parte da população e tenha ao longo de seu mandato visitado várias vezes  o continente africano e discursado eloquentemente sobre a necessidade  de reconhecimento do valor dos afrodescendentes na formação de nosso  Estado Nacional, ele encerra seu mandato permitindo  um declínio acentuado na elaboração e na implementação de políticas anti-racistas no campo da educação. 
Se  em 2003 podíamos reconhecer, ainda que timidamente, o fato de o combate  ao racismo fazer parte da agenda política brasileira; em 2010, devemos  denunciar o descompromisso com essa luta. Descompromisso que pode ser  percebido pela redução acentuada do orçamento para a educação das  relações raciais, pelo enxugamento da equipe de trabalho da Coordenação  Geral de Diversidade e Inclusão Educacional/SECAD/MEC, responsável pela  implementação das ações de diversidade étnico-racial. Ainda vale  ressaltar que houve a retirada do portal de diversidade da rede do MEC; a  interrupção de publicações sobre o tema para a formação de  profissionais da educação, pelo frágil apoio que das secretarias de  educação para o cumprimento do proposto no parecer CNE/CP 3/2004. Essas  constituem algumas referências negativas, entre várias outras apontadas  pelos estudos sobre o tema.
Nós  negros, cidadãs e cidadãos, que trabalhamos duramente longos anos para a  eleição do presidente Lula esperávamos mais. Esperávamos mais tanto do  presidente quanto da sua equipe executiva que administra a educação  brasileira. Esperávamos minimamente que ao longo desses anos a equipe  tivesse compreendido o alcance e o impacto do racismo em nossa  sociedade. Esperávamos que eles, respeitando os princípios de justiça  social, independentemente dos grupos no poder, emitissem manifestações  veementes pelo combate ao racismo na educação. Pelo visto as promessas  de parcerias e acolhimento das nossas considerações eram falsas. 
O  que temos como resposta, para além do silêncio de toda Secretaria de  Educação, Alfabetização e Diversidade, é o posicionamento por parte do  ministro, que não vê racismo na obra, colocando-se favorável à sua  distribuição irrestrita, que, em companhia de outros elementos no  cotidiano escolar, sabemos, contribuirá para a formação de novos  indivíduos racistas, como já se fez no passado. Sem dúvida, o discurso  do ministro mostra-se engajado com sua própria raça, classe e gênero. O  mais irônico é saber que em pleno século XXI o Brasil será visto como um  país que avança na economia e retrocede nos direitos humanos da  população negra.
Muitos  admiram Monteiro Lobato. Eu admiro Luiz Gama que se valeu das páginas  da imprensa em defesa da liberdade dos escravizados e disse,  sintetizando nossa ainda atual resistência cotidiana: “Em verdade vos  digo aqui, afrontando a lei, que todo o escravo que assassina o seu  senhor, pratica um ato de legítima defesa”. O conhecimento é a arma que  dispomos para lutar pela defesa de nossa história, nossa existência, bem  como do futuro de nossos filhos e filhas. Essa é uma luta desigual,  portanto desonesta. Mas ainda que muitos queiram nosso silêncio,  seguiremos lutando e denunciando essa forma perversa de racismo que  perdura na sociedade brasileira. 
[1]  Tal obra foi selecionada pelo Programa Nacional Biblioteca na  Escola/2010, que objetiva a “seleção de obras de apoio pedagógico  destinadas a subsidiar teórica e metodologicamente os docentes no  desenvolvimento do processo de ensino e aprendizagem nos respectivos  campos disciplinares, áreas do conhecimento e etapas/modalidades da  educação básica” (Brasil. Edital PNBE 2010. Brasília: MEC/FNDE, 2010).
[2] Agência Brasil. Pesquisadora aponta retrocesso na política de combate ao racismo nas escolas. Disponível em: http://verdesmares.globo.com/v3/canais/noticias.asp?codigo=216721&modulo=450. Acessado em: novembro de 2010. 
 
   
 
muito interessante ii concordo bastante com tudo issoo....
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