Brasil, 20 de novembro de 2010, Dia da Consciência Negra
Excelentíssimo Presidente da República Federativa do Brasil, Sr. Luís Inácio Lula da Silva,
Em  um ato político e humano, vossa excelência ofertou asilo a Sakneh  Mohammadi Ashtiani como forma de preservar-lhe a vida, visto que a mesma  corre risco de ser apedrejada até a morte física em seu país, o Irã. 
Se  me permite a analogia, pelo exemplo que vossa senhoria encarna para a  Nação, creio que seria, além de político e humano, um gesto emblemático e  valoroso se  vossa senhoria manifestasse sua preocupação e  garantisse “proteção” às crianças negras inseridas no sistema de ensino  brasileiro, zelando por sua sobrevivência moral e sucesso em sua  trajetória educacional. Como vossa senhoria já afirmou: “Nada justifica o  Estado tirar a vida de alguém”, e, no caso do Brasil, nada justifica  que o Estado colabore para fragilizar a vida emocional e psíquica de  crianças negras, propiciando uma educação que enseja uma violência  simbólica, quando não física, contra elas no cotidiano escolar. Sim, a  violência diuturna sofrida pelas crianças negras no espaço escolar pode,  em certa medida, ser comparada ao apedrejamento físico, visto que o  racismo e seus derivados as amordaça. Assim, emocionalmente  desprotegidas em sua pouca idade, as crianças passam a perseguir um  ideal de “brancura” impossível de ser atingido,  fazendo-as mergulhar em um estado latente, intenso e profundo de insatisfação e estranhamento consigo mesmas.   
É  fato que as crianças em geral não possuem natureza racista, mas a  socialização que lhes é imposta pela sociedade as ensina a usar o  racismo e seus derivados como armas para ferir as criança as negras, em  situacões de disputas e até simplesmente para demarcar espacos e  territórios, bem ao exemplo dos padrões da sociedade mais ampla. A  escola constitui apenas mais uma instituição social na qual as  características raciais negras são usadas para depreciar, humilhar e  excluir. Assim, depreciadas, humilhadas e excluídas pela prática escolar  e consumidas pelo padrão racista da sociedade, as crianças negras têm  sua energia, que deveria estar voltada para o seu desenvolvimento e para  a construção de conhecimento e socialização, pulverizada em repetidos e  inócuos esforços para se sentir aceita no cotiano escolar. 
Se  há no Irã - liderados pelo presidente Mahmoud Ahmadinejad - um grupo  hegemônico que, embasado em uma interpretação dogmática do Islamismo e  na particular percepção do que é legitimo, detém o poder de vida de  morte  sob as pessoas, não menos brutal no Brasil, temos um grupo no poder  que, apesar de não deliberar explicitamente pela morte física de negros e  negras, investe pesadamente na manutenção da supremacia branca, advoga  pelo não estabelecimento de políticas que promovam a igualdade, e nega  sistematicamente qualquer esforço pela afirmação dos direitos dos  afro-brasileiros. 
Excelentíssimo, a supremacia branca mina as bases de qualquer perspectiva de justiça social. A  eliminação  do racismo e de seus predicativos depende do questionamento do poder  branco, visto que a subalternização dos negros é fonte permanente de  riqueza, prosperidade e garantia de poder arbitrário e absoluto. Não  seria está também uma forma de matar e de exterminar? Não estaria aí um  protótipo do modelo de genocídio à brasileira?  
Nossa  aposta, sr. presidente, é que estando sob um regime democrático - ainda  que permeado por estrutura historicamente racista que nega aos negros  os direitos de cidadania – possamos contar com  os órgãos  públicos competentes no dever legal de zelar pela igualdade substantiva.  Neste sentido, o Ministério da Educação (MEC) encontra-se submetido às  leis nacionais e aos tratados internacionais promulgados pela ONU, o que  legitima nosso direito de exigir que, sendo o órgão representante do  Estado brasileiro no campo da educação, promova o bem estar de nossas  crianças, e que não contribua, portanto, para a sua dilapidação moral. 
Senhor  Presidente, que legitimidade tem um governo que abraça o projeto  político de ‘um país de todos”, mas que investe recursos públicos na  disseminação de uma pedagogia racista entre os seus pequenos cidadãos?  Um Estado que compra e envia para as escolas material pedagógico que  contém estereótipos e preconceitos quer sejam étnicos, raciais e/ou de  gênero pode ser compreendido como um Estado que fornece combustível  ideológico para que a humanidade dos indivíduos tidos como ‘diferentes’  seja desconfigurada. Não nos parece que é a proposta política deste  governo incentivar e disseminar  ideologias racistas que promovem a deterioração da identidade e da autoestima da criança negra. 
É  neste sentido, senhor presidente, que a contenda sobre o livro de  Monteiro Lobato deve ser vista apenas como mais um episódio em que os  negros aparecem como inconvenientes e não encontram solidariedade por  parte dos formadores de opinião e representantes da administração  pública. Talvez tais agentes  fossem mais solidários com a  luta anti-racista caso os materiais pedagógicos contivessem referências  depreciativas em relação às suas identidades.  Talvez  conseguissem perceber o escárnio se as personagens obesas fossem  referidas como aquelas que “comem como uma porca cebosa”. Talvez se  motivassem a protestar caso um livro contivesse um padre católico  apresentado como “lobo que devora criancinhas”.  Talvez  também fossem contrários à distribuição de obras clássicas que  contivessem a idéia preconceituosa de que: “os políticos agem no escuro  como ratos ladrões”. 
Entretanto,  senhor presidente, ter no livro de Monteiro Lobato personagem negra que  “sobe na árvore como macaca de carvão” é visto como algo absolutamente  natural e que deve ser mantido para preservar a liberdade de expressão.  No fundo querem que nós negros e negras subscrevamos tal obra como um  elemento histórico que, constitutivo da “democracia racial brasileira”,  deve ainda ser difundido nas escolas, a despeito dos estragos que possa  produzir na formação de nossas crianças brancas e negras.
Aceitar tais práticas insidiosas é negar a nós mesmos e rasgar o histórico de resistências que marca a identidade negra.  Não  podemos aceitar que nossas crianças negras sejam sacrificadas e usadas  para o entretenimento, deleite e regogizo das crianças brancas. E nós,  seus pais e educadores,  lamentaríamos ver nossas crianças obrigadas a se defenderem de pedradras usando pedras contra “Pedrinhos”. 
A  era da inocência acabou, como nos lembra a militância negra! Os  chamados textos clássicos não representam a última (sacrosanta) palavra  sobre o mundo social. Não é segredo que muitos dos textos sob tal  categoria  são na verdade a bíblia da dominação  branca-masculina-heterosexual, representando uma falsa imagem sobre quem  somos. Propicia, por exemplo, que homossexuais sejam agredidos no  cotidiano escolar e/ou na calada da noite, nas esquinas escuras das  nossas cidades. 
Uma  educação que oferta estereótipos étnicos, raciais, de gênero e/ou  homofóbicos facilita que jovens, ainda que supostamente “bem educados”,  organizem  práticas criminosas como o “rodeio das gordas”, ocorrido na UNESP ainda  agora. É pelo investimento possessivo na supremacia branca, assegurado  pela desumanização dos negros, que pessoas queimam índios e moradores de  rua; é a partir de uma educação sexista que jovens tornam-se  preconceituosos a ponto de espancar mulheres em pontos de ônibus, por  acreditarem que são prostitutas. É a sistemática exposição de nossos  meninos e jovens a idéias e práticas machistas que constitui terreno  fértil para que quando homens crescidos, diante da percepção de ameaca á  sua masculindade, assassinem suas namoradas, esposas e/ou amantes,  conforme constatamos nos nossos noticiários.
Assim, senhor presidente, trata-se de legítimo e necessário o parecer do Conselho Nacional de Educação - CNE/CEB  Nº: 15/2010, sobre as medidas de combate aos estereotipos e  preconceitos na literatura. Não se trata de censura política, como se  quer passar, mas de proteção social das nossas crianças. Pois, assim  como um buquê de rosas que apesar da beleza contém espinhos pontiagudos,  os livros com teor discriminatório ferem. Alguns ferem de maneira  profunda e indelevelmente marcam trajetórias de vida. Logo,  podemos  questionar se um educador que, ao dar a rosa, alerta sobre a existência  de espinhos, estaria censurando a existência da rosa e banindo-a do  jardim, ou estaria apenas, responsável que é, cumprindo o dever de  proteger a criança pequena? 
Há  que se ter cuidado com nossas criancas que, a partir de sua próspera  administracao, sr. presidente, mais cedo adentram o cotidiano escolar.  Se elas entram mais cedo na escola, é fato que também  experienciam mais cedo o  contato  sistemático com um cotidiano discriminatório, repleto de violência  racial, vivendo precocemente a dor e o sofrimento de serem desumanizadas  com qualificativos  como macaco e urubu, assim como Monteiro Lobato dissemina em suas histórias. 
Infelizmente,  sr. presidente, nós negros adultos, ainda que tenhamos sobrevivido a  esses mesmos sofrimentos em nossas histórias de vida, não conseguimos  encontrar remédio eficaz para curar a dor que corrói a alma de nossas  crianças pequenas. Não descobrimos ainda palavras mágicas que apaguem da  memória de nossas crianças a vergonha da humilhação e do escárnio  público. A valorização da beleza de nossa pele e o histórico de luta de  nosso povo apenas amenizam o sangramento moral. É difícil se contrapor a  um ideal de beleza e de sucesso que reserva um lugar inferior na  sociedade aos indivíduos de pele negra. 
Sr.  Presidente, em nome de seu legado que engrandeceu este país e retirou  da miséria milhões de brasileiros, não permita que, sob sua  administração, mesmo nestes momentos finais, prevaleça um modelo de  Educação que, apenas assentado em discursos contra o racismo e o  preconceito racial, utiliza-se do poder e dos recursos públicos para a  compra de materiais que veiculem estereótipos e idéias preconceituosas  perniciosas para milhões de crianças, futuros cidadãos, que no futuro  poderiam lembrar-se não destas “leituras”, mas sim das incomparáveis  conquistas da era Lula. 
Vossa senhoria que afirmou em seus discursos a importância do combate ao racismo na sociedade;  que, através da primeira  lei assinada em seu governo - Lei 10.639, em 09 de janeiro de 2003, tornou obrigatório  o ensino de História e Cultura Afro-Brasileira, observe  atentamente para que os profissionais do Ministério da Educação não  contradigam os seus pronunciamentos públicos. Talvez, sr. presidente,  não haja mais tempo para corrigir o descaso desses para com as políticas  de educação em áreas quilombolas, visto que os recursos empenhados no  orçamento 2009, sequer, até a presente data, foram utilizados para o  pagamento dos convênios aprovados, impossibilitando assim que as escolas  quilombolas recebam material didático e pedagógico adequados.  Certamente não há mais tempo para elaboração e distribuição de livros  para subsidiar a prática pedagógica anti-racista, visto que a política  foi interrompida em 2006 juntamente  com o fim do Programa  Diversidade na Universidade – que mesmo tendo recebido o aval positivo  do BID para uma segunda edição ampliada, por ter sido avaliado como um  programa modelo para a América Latina, não contou com a aprovação das  gerências superiores do MEC. 
Infelizmente,  excelentíssimo presidente, não há tempo também, certamente, para lograr  as metas de formação de professores e professoras para a educação das  relações etnicorraciais, visto que as secretarias de educação estaduais e  municipais, devido à ausência de uma consistente campanha de combate ao  racismo na educação, comandada pelo MEC, pouco se engajaram para  alcançar esse objetivo. 
Essa  triste realidade, sr. presidente, atesta que Fernando Haddad, ministro  da educação, deixará, infelizmente no legado de seu governo, a triste  memória de um trabalho inexpressivo no que concerne à políticas públicas  para o combate ao racismo e a valorização da história e cultura  afro-brasileiras. Ele que, mesmo tendo a faca e o queijo nas mãos, pouco  fez para o fortalecimento da educação anti-racista e  anti-discriminatória no país, encerra seu mandato sinalizando aliança  com vertentes  contrárias às conquistas sociais, dificultando, assim, que o Conselho  Nacional de Educação cumpra o papel que lhe é devido.  A devolução do parecer CNE/CEB Nº: 15/2010 dá bem a dimensão do retrocesso político e concretiza  uma  velada censura às políticas de combate ao racismo pelo MEC. A atitude  do ministro Haddad traduz sua vontade política e fornece elementos para  compreendermos o porquê do inexpressívo desenvolvimento das políticas anti-racistas no interior do MEC e, a partir dele, nos sistemas de ensino.
Assim presidente, o senhor que compreende o combate ao racismo como uma luta pela justica social, não permita que o Estado brasileiro retroceda nas conquistas dos direitos dos afro-brasileiros: não deixe sua consciência passar em branco! Relembrando suas palavras am relação à dívida do Brasil para com o continente africano: "Têm  coisas que a gente não paga com dinheiro, mas com solidariedade,  companheirismo e sentimentos", seja solidário à Sakneh, mas também  aproveite o 20 de novembro e renove o seu compromisso com  o  Brasil negro.  Em nome das crianças negras e brancas, em nome dos filhos do Atlântico negro,  manifeste-se favoravelmente às orientações do Parecer CNE/CEB Nº: 15/2010 – (http://www.euconcordo.com/com-o-parecer-152010).
Respeitosamente, 
Eliane Cavalleiro
Doutora  em Educação pela Faculdade de Educacao da USP, 2003 – coordenadora  executiva de Geledés – Instituto da Mulher Negra, de 2001 a 2004;  coordenadora de Diversidade da SECAD/MEC, de 2004 a 2006; ex-professora  adjunta da Faculdade de Educacao da UNB – de 2006 a fev/2010; presidente  da Associação Brasileira de Pesquisadores negros, de 2008 a jul/2010, é  cidadã brasileira, que luta para que seus netos e bisnetos e demais  gerações tenham o direito a uma verdadeira educação anti-racista. 
 
 
   
 
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